A história política de Singapura pelos quadrinhos

Ao longo da história, a história em quadrinhos (conhecida também como a nona arte) sempre foram renegados como uma narrativa artística em potencial, mesmo tendo sua interferência fortalecida desde a Segunda Guerra. Com a passagem do tempo, o gênero só foi cresceu em diversos sentidos. Durante a década de 1980, obras como Watchmen, Batman: O Cavaleiro das Trevas e Maus ajudaram a trazer uma nova perspectiva sobre as HQs, buscando um público mais adulto e discussões políticas mais aprofundadas.

Chegando nos anos 2000, essa maneira de contar histórias já havia sido difundida como uma novidade em um mundo tão acostumado com o audiovisual (sociedade do espetáculo, como diria Guy Debord). O jornalismo passou a se utilizar disso, porém alguns roteiristas também buscaram renovar a arte, trazendo abordagens diferenciadas. Esse foi o caso do malaio Sonny Liew (atualmente vivendo em Singapura), que fez A Arte de Charlie Chan Hock Chye, lançado pela editora Pipoca e Nanquim. Na trama, Liew inventa um renomado quadrinista do país oriental, sob o nome de Charlie Chan. Ele, através da sua vida, relaciona-se intrinsecamente com toda a história de Singapura, oportunidade perfeita para se aprofundar politicamente nessa nação.

“Bem… inicialmente foi realmente feita mais para os leitores de Singapura – eu não achava que mais alguém estaria interessado. À medida que o livro se desenvolveu, tive a sensação de que a abordagem narrativa formal estava realmente funcionando e imaginei se poderia ter um alcance fora de Singapura. Mas qualquer alcance realmente veio mais como um bônus do que como uma intenção”, revela o autor.

Sonny poderia ter sido mais superficial para contar toda essa tensão política destacada do país, devido à intensa colonização inglesa, fusões e separações com a Malásia, além da influência forte da China na região, principalmente durante o século XX. Ele, no entanto, prefere se aprofundar nessa gigantesca discussão, trazendo até elementos mais didáticos – como é o caso de alguns personagens aparecerem para lembrarem dos glossários – afim de realmente criar um entendimento aprofundado.

Esse meio tempo conflituoso desde o nascimento de seu personagem, Charlie Chan, é elaborado de forma interligada aos acontecimentos. Um exemplo disso é bem no início do quadrinho, quando esse está fazendo um conto sobre a relação entre um menino e um robô gigante. Em determinada edição, eles precisam ajudar estudantes devido a ataques do governo ante os estudantes no Parque George V, na qual o narrador diz ter sido “arbitrário”.

A tensa publicação

A HQ foi financiada através de uma verba governamental, inicialmente. Todavia, quando o forte teor político e crítico da história do país veio a tona, Liew sofreu uma retaliação de verba, tendo sido cortada no momento de publicação do volume. Esse fato poderia ter sido o catalisador para deixar todo o projeto de lado, mas serviu como uma intensa divulgação “reversa”.

“Os quadrinhos locais não costumam vender muitas cópias em Singapura, então havia a preocupação de que, sem a concessão [financeira], o editor pudesse perder dinheiro. A atenção da mídia sobre a retirada do subsídio ajudou a aumentar a conscientização sobre o livro e nos ajudou a vender muito mais cópias do que o previsto…” relata o quadrinista. “Como em muitos lugares, as vozes fora do establishment têm mais dificuldade de se beneficiar do apoio ao establishment, por isso é um esforço constante para entender quais os sacríficos e ganhos que podem estar falando na sua cabeça, bem como se o que você tem a dizer realmente faz sentido, nesse mundo muitas vezes complexo.”

Apesar disso, ele ainda sente um certo receio dessa conexão e olhar dentro do país: “A preocupação que tenho é que a percepção, disso como um desafio à narrativa do Estado, pode significar que alguns leitores seriam cautelosos em pegá-la, tanto quanto isso também obriga os outros a lê-la. E, certamente, o próprio Estado não está disposto a promover o título, como teria sido o caso de outro título que recebeu recepções críticas e prêmios igualmente positivos”, completa.

Dentre as diversas críticas relacionadas à sua história, algumas eram formalizadas em torno da mistura entre política e quadrinhos. Perguntado sobre essa relação – defendida por diversos grupos no Brasil -, Liew foi bem enfático.

“Bem, por que você não pode misturar essas coisas? Eu acho que é, em parte, porque a política é muitas vezes vista como divisiva, enquanto as pessoas só querem se divertir quando estão lendo quadrinhos ou assistindo filmes”, comenta. “O problema com essa linha de pensamento é que isso não significa que as questões políticas, ou divisivas, não estão na cultura pop “divertida”, mas sim que elas estão profundamente enraizadas, invisíveis, em algum lugar nas suposições de fundo, então estamos de fato sendo alimentou por uma ideologia. Isso pode não ser uma coisa consciente por parte dos criadores, ou pode ser… mas está sempre presente”.

Liew também relatou acreditar dessa questão política ser muito mais sob a ótica do artista. Para ele, o enfoque que ele quis dar trouxe a história na qual escreveu.

“Mesmo se quisermos acreditar que alguma cultura pop pode ser inocente, divorciada da política, isso ainda não é um argumento para a necessidade de todos os livros e filmes serem assim. Para mim, a história e a política de Singapura são tópicos em que estou interessado, então a ideia de que eles não deveriam se misturar com histórias que escrevemos ou desenhamos parece boba”, diz o autor.

Após a publicação

A chegada da obra nos países ocidentais serviu como grande força de catapultar o nome de Sonny, devido a polêmica ter chegado na mídia mundial. Essa conquista foi confirmada de vez com a vitória de 3 troféus do Prêmio Eisner (o Oscar dos quadrinhos), em 2017, de Melhor Escritor/Artista, Melhor Design de Publicação e Melhor Edição Americana de material internacional.

Portas se abriram após essa aclamação, fazendo o artista ter trabalhado com a editora IDW, fazendo capas para títulos como G.I Joe e Transfomers, além de, mais recentemente, com a Boom! Studios.

É claro como a publicação de A Arte de Charlie Chan Hock Chye causou uma transformação dentro da indústria dos quadrinhos, principalmente devido ao seu confronto direto politicamente. Ao realizar a obra, Sonny Liew buscou trazer uma revisão histórica para um país tão pouco discutido ainda pelo mundo. Para ele, entretanto, esse movimento da arte, principalmente nas HQ’s, ainda é algo para acontecer de maneira mais incisiva.

“Mangá do Japão fornece um forte contrapeso em quadrinhos [aos Estados Unidos e Reino Unido]. A China, dada a sua ascensão econômica, seria logicamente candidata, mas sua abordagem autoritária pode significar que sua produção cultural tem menos espaço para trabalhar e isso poderia limitar sua diversidade e profundidade. Regionalmente, nos perguntamos se poderia haver um movimento do Sudeste Asiático – mas isso continua sendo um trabalho em andamento”, finaliza.

Comentários

Cláudio Gabriel

É apaixonado por cinema, séries, música, quadrinhos e qualquer elemento da cultura pop que o faça feliz. Seu maior sonho é ver o Senta Aí sendo reconhecido... e acha que isso está mais próximo do que se espera.

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