Jolies Ténèbre, por Vehlmann e Kerascoët
Não se deve julgar nada, nem ninguém, pelas aparências.
Essa frase é dita e repassada há gerações não só como um lema de integridade, mas também como a grande lição de aprendizado em inúmeras obras de ficção (ainda que a primeira a ser lembrada seja A Bela e a Fera). Em produtos midiáticos, é possível trazer esse preceito para a questão de como histórias sendo contadas se relacionam com a maneira com a qual são contadas. A estética é quase sempre acompanha o teor da obra. Isso está presente, por exemplo, nas animações em stop-motion de Tim Burton, como A Noiva Cadáver e Frankenweenie, que apesar de serem produtos “voltados ao público infantil” apresentam um visual macabro e sombrio que é pertinente à trama e aos personagens. Ainda assim, esses filmes não deixam de ser lúdicos e mágicos por trazerem contos supostamente assustadores.
No entanto, também não são poucos os títulos que trazem, paradoxalmente, visuais lúdicos e coloridos para ilustrar histórias extremamente gráficas e sombrias. É este o caso de Jolies Ténèbre, graphic novel francesa escrita por Fabien Vehlmann e ilustrada pela dupla Marie Pommepuy e Sébastian Cosset, que juntos assinam o trabalho com o pseudônimo Kerascoët. Com uma arte cartunesca e colorida, a história segue Aurora, a líder de um povo de pequenas criaturas humanoides do tamanho de moscas de fruta que são subitamente expulsas de suas casas e obrigadas a viver na selvageria da floresta. Desde as primeiras páginas, o quadrinho trabalha com uma ideia que se estende até o final: é possível permanecer a mesma pessoa diante de circunstâncias que põe em risco sua sobrevivência?
À princípio, a arte em aquarela e o design dos personagens é o que chama mais atenção. O pequeno povo apresentado aqui é composto de diversas formas e tamanhos, destacando a criatividade e inventividade dos artistas para compor a galeria do trabalho. A composição de sombras e cores, com destaque para o uso diversificado do verde e do azul para a representação da floresta, também merece elogios. Porém, conforme a leitura avança, a história fica cada vez mais perturbadora. Os personagens tomam decisões inesperadas até para o leitor mais preparado, sendo responsáveis por ações cruéis sem nenhum motivo aparente. A protagonista Aurora tenta desde o começo fazer da floresta o melhor lar possível para todos, mas sobreviver em meio a um ambiente hostil onde cada vez mais o instinto do “olho por olho, dente por dente” parece prevalecer entre os habitantes se torna uma tarefa cada vez mais difícil. Além desta que parece ser a trama central, ainda temos pequenas cenas da população sendo confrontada com esta nova realidade, em situações que se tornam ainda mais incômodas pela maneira com que são desenhadas.
Quando chega à última página, o leitor então percebe que se depara com umas das retratações mais cruas de sobrevivência em grupo, um trabalho que realmente se destaca não só pela estética que dialoga com seu conteúdo filosófico mas também pela narrativa, que consegue ser complexa e bem construída apesar de simples. Em uma comparação bruta, Jolies Ténèbre se assemelha tematicamente a obras como Senhor das Moscas, trazendo a parábola da maldade humana em meio à dificuldade em uma roupagem de conto de fadas infantil. O livro pode funcionar também uma crítica ao comportamento inerentemente humano e egoísta que as pessoas possuem em momentos inesperados. Aqui, personagens roubam uns aos outros, literalmente se devoram, torturam e matam animais e outras criaturas que os ajudaram previamente e tiram vantagens uns dos outros até mesmo por pura crueldade. No final da narrativa, Aurora percebe que ela precisa fazer o que é necessário para sobreviver e isso significa, em diversos momentos, tomar atitudes que ela antes nunca tomaria, como torturar, roubar e assassinar.
Há ainda a questão da origem deste povo. Nas primeiras páginas, conhecemos uma menina humana (é possível diferenciá-la das criaturas por seus traços, mais realistas e com cores mais sóbrias). Logo depois, os personagens saem de dentro de seu corpo. Era lá que eles moravam e quando ela morre, eles perdem seu lar. Conforme o tempo passa, o corpo da menina (que se chama Aurora, ligando-a à nossa pequena protagonista de uma maneira metafórica ou não) se deteriora nas entranhas dessa floresta, e ninguém parece encontrá-la. Há sutis dicas no livro que indicam qual foi o destino da menina, mas isso é interpretação pessoal. Vai do que cada um lê ou deseja não ver nesta história, que já é cheia de barbaridades no campo lúdico, que dirá no já perigoso e sombrio “mundo real”?
Infelizmente, esta pequena obra-prima de Kerascoët e Vehlmann não traduzida para o português, assim como outras obras de destaque da dupla de ilustradores, como a elogiadíssima Beauté, Miss Don’t Touch Me e Satania. A graphic novel também foi indicada ao Eisner Awards, prêmio equivalente ao Oscar dos quadrinhos. O que fica aqui, além de uma ode à artistas que não tem medo de misturar gêneros e não possuem receios de serem macabros, é também uma carta aberta à grandes editoras com o pedido de que tragam mais trabalhos como esse para que o público tupiniquim também possua acesso. Afinal, todo mundo merece perder uma boa noite de sono por causa de uma história em quadrinhos pra lá de perturbada.