O misticismo em O Escolhido, da Netflix
É interessante pensar como o fantástico possui um impacto diferente dependendo da região do mundo. Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas, por exemplo, é um filme tailandês que retrata isso de forma bem particular. Assim como 3%, outra série nacional da Netflix, que apresenta um mundo distópico baseado em nossa realidade. O Escolhido busca uma correlação bem próxima nessa situação brasileira. Contudo, ao debater sobre seus temas, o seriado se desvencilha um pouco disso e tenta andar com as próprias pernas. A produção tenta falar sobre os âmbitos sociais e como é trabalhado e relatado o misticismo em nosso país.
Para ir além disso, o ponto de partida da trama é menor, menos chocante. Lúcia (Paloma Bernardi), Enzo (Gutto Szuster) e Damião (Pedro Caetano) são três médicos da Organização Mundial da Saúde no meio do Pantanal. Todos são renegados pelo chefe em suas atividades por serem uma mulher, um homem rico e um negro. Esse tratamento os faz sempre se sentirem inferiores em seus projetos. No meio disso, são chamados para realizar uma trabalho de vacinação de uma mutação da zika na vila de Aguazul, com pouquíssimo contato perante às cidades maiores. Chegando lá, contudo, todos acabam rechaçando a chegada deles com atitudes violentas. Eles acabam descobrindo que o lugar é guiado por um líder em uma espécie de seita religiosa cristã.
Contando com seis episódios, a série tem um desenvolvimento primordial até bem interessante. Em toda sua primeira metade, boa parte das questões ficam em um lado mais nebuloso, pouco apresentado na visão dos personagens. Mateus (Mariano Mattos Martins) é a figura chave nisso tudo, mandando na ilha, porém muitas vezes colocado de lado. Existe até uma sinergia intrigante desse olhar para o desconhecido nos três médicos, algo na qual deixa a narrativa esquisita em boa parte do tempo. O Escolhido (Renan Tenca) surge diretamente nesse período, mostrando suas diversas facetas. Desde líder até dono de um certo controle, todavia altamente religioso.
Essa religiosidade que acaba por trazer todo o misticismo e o suspense a tona. Não sabemos para onde cada um vai e se existe realmente bons e maus, heróis e vilões. A história, por muitas vezes, acaba sendo até meio turva, em períodos meio enigmáticos. Um exemplo é a conversa da Vida (Alli Willow) e Damião, na qual as aparições da primeira são quase fantasmagóricas. O segundo, dessa maneira, trata em uma espécie de algo sobrenatural, algo ainda reforçado quando ele acorda no dia posterior. Esses pequenos caminhos, entretanto altamente misteriosos, fomentam um início intrigante para a audiência. Tudo é elevado ao máximo no episódio “Ame Teus Inimigos”, o início da segunda metade. Nele esse lado mais bizarro dá conta durante toda a festa, mas é aí também que o roteiro de Raphael Draccon e Carolina Munhóz se atrapalha.
Quando tudo é explicado, as situações ficam meio emboladas. Mateus parece não ter muito o que fazer, Lúcia tem seus períodos aceitando mais o que é demonstrado em sua frente e outros não, além de existir uma tentativa de esconder os outros dois doutores. A mistura entre suspense e terror proposta anteriormente é colocado de lado para uma tentativa dramática sobre essa questão mesmo. Aliás, o bem colocado drama com os flashbacks antes, acaba não sendo elevado de forma direta. Os personagens parecem quase mudar suas características as vezes. Há uma tentativa de junção dessas subtramas para uma principal – algo melhor equiparado pelo passado do Escolhido, seus irmãos e Vida -, todavia em poucos pontos. Acaba sendo uma colcha de retalhos meio complicado e deveras confusa.
A direção de todos os episódios, por Michel Tikhomiroff, acaba só transbordando essa correlação meio atrapalhada. Ao expor os flashbacks ele até busca uma estética meio brega para rememorar um passado perdido dos personagens. No presente, ele consegue misturar momentos coesos a narrativa nos períodos dos rituais. A câmera mais afastada para olharmos a distância começa aos poucos a chegar próxima aos acontecimentos, quando tudo é posto a prova. Sendo assim, toda forma de dirigir, apoiando-se mais nesse terreno do fantástico, até é funcional para deixar clara as ações. Mesmo assim, o lado mais “humano”, por assim dizer, carece de um entendimento de universo.
A primeira temporada de O Escolhido tenta em boa parte buscar uma iconografia própria de mundo para limitar os personagens nos acontecimentos. Tenta trazer uma estética de um lado místico e bizarro, porém baseado em um caminho cristão. Para a própria temática da obra essa relação funciona no início, mas se perde do meio para o final. O final cliffhanger para uma próxima temporada eleva os telespectadores a continuarem acompanhando essa trajetória. Isso poderia estender a uma exposição geral durante os seis episódios. Talvez faltasse um pouco de tranquilidade para mostrar mais sobre o Escolhido e seus subordinados.