Shazam! e o mito do herói para a infância
Mitos sempre fizeram parte, de maneira quase onipresente, das histórias humanas. Desde a primeira civilização reconhecida, na Mesopotâmia, a crença em figuras mitológicas, sempre com status superiores, se formou quase como uma espécie de fundação do nosso DNA. O ato de acreditar é um mito também, uma base que se perpetua desde a mitologia (como a nórdica, grega, celta, ameríndia) até a religião. Dessa forma, é interessante se questionar sobre a contemporaneidade e buscar entender quais seriam as nossas fábulas atuais, podendo haver diferentes tipos de resposta – como Deuses Americanos busca fazer com as mídias. Todavia, Shazam! responde isso de uma forma totalmente diferente, com o ideal mítico da sociedade contemporânea ser fundamentado em cima dos heróis desde a nossa infância.
Na história do filme, Billy Batson (Asher Angel) é um garoto órfão que busca encontrar sua família após um longo período de tempo passando por lares adotivos. Ele acaba indo parar na casa de um casal com diversos outros filhos adotivos, todos dos seus jeitos e perspectivas pessoas, além dos objetivos próprios na vida, independente do seu laço sanguíneo. Certo dia, após proteger um de seus novos irmãos, ele acaba indo parar em um lugar mágico, recebendo os poderes para ser o Shazam (Zachary Levi).
Tematicamente, o longa aborda duas questões primordiais: as relações familiares e o crescimento de Billy como herói. No primeiro quesito, essa se torna uma fundamentação dramática e intrínseca à obra, sendo um fator de vida para o personagem descobrir sua identidade e seu passado para poder saber como construir seu futuro. A direção de David F. Sandberg se pauta em sempre alimentar a construção desse novo lar na casa aonde chega. Por isso, a comodidade apresentada através das cores quentes na roupa dos novos pais e em todos os cômodos, em contraste com as cores frias presentes no abrigo anterior, é ainda exacerbada pela fotografia de Maxime Alexandre. Esse núcleo familiar se torna um importante ponto de reserva moral para o protagonista, na qual irá ressoar cada vez mais relevante ao passar da narrativa.
Em relação ao segundo quesito, é uma edificação sempre feita com base na comédia. O drama estabelecido nesse quesito faz apenas parte da mesma concepção desse novo espaço, falada anteriormente. Com isso, Sandberg propõe sua encenação em uma ideia quase relacionável ao Youtube (não é a toa a menção direta nisso da própria obra), com testes sobre os poderes e diversas brincadeiras relacionáveis a juventude. É como se essa pavimentação do surgimento de um novo herói, se baseasse em uma figura tão traumatizada, mas passível de buscar essa força em rir do seu potencial. Em não acreditar no que seria possível fazer. Esse quesito pode acabar não funcionando tão bem em situações mais tensas – como a luta final no terceiro ato -, mas servem bastante a solidificar revelações inesperadas – também acontecida no terço final. Por isso, a participação de Freddy Freeman (Jack Dylan Grazer) aqui se torna tão relevante, tornando-se a peça chave de conexão entre essas duas estruturas. Sua participação ainda exalta a autoconsciência da película, em saber sempre sobre essas chaves do próprio herói e personagens rondando o universo. Existe quase uma explanação a cada nova aparição dessas figuras mitológicas e a cada novo acontecimento.
Freddy, aliás, também é fundamentador para a construção do universo da história. Sua paixão por heróis e o crescimento dessas figuras como uma forma de fuga para sua condição de deficiente e sem a família biológica, já demonstram claramente esse ponto de escape sobre a mitologia dos heróis. Esses se tornam a esperança em apenas viver, existir em um mundo tão complexo e afastador pela sua própria condição, algo na qual a cena do menino olhando para a batalha final salienta de forma cirúrgica. Para além disso, é interessante observar o ideal em entender uma certa moralidade desses mesmos seres poderosos, da maneira que eles podem salientar condições boas da humanidade ou exacerbar fatos ruins, algo expresso até em um diálogo de Billy com o Mago Shazam (Djimon Hounsou). Batson, por sinal, sempre se exerce como arrogante, mas em seus momentos de maior ternura, de forma heróica. Não é à toa a passagem em frente à imagem de Jesus logo nos primórdios da trama. Ali, já se demonstra seus ideais perante as complicações da vida.
O vilão Thaddeus Silvana (Mark Strong), inclusive, se transforma em relevante para todo esse diálogo proposto a narrativa. Toda a sua história anterior, apresentadas na cena de abertura, já relatam também uma conturbação do ceio da família, sendo essa o ponto de corrupção dos seres humanos. Entretanto, seus objetivos são simplesmente criar como um ser quase supremo, superior a tudo e todos, tentando impor toda a repressão sofrida durante sua vida. O diretor enfatiza todo esse contraponto dele ser adulto em não acreditar nessas figuras mitológicas, em acreditar apenas nos nossos pecados capitais (representados em figuras monstruosas), além de se assumir sério a todo momento, tendo perdido toda a sua carga de objetivos em vida.
Shazam! é um dos filmes mais interessantes do gênero de super heróis a abordar sobre como esses poderes constroem os novo mitos contemporâneos, principalmente em relação a infância perdida, em buscar algo para se sustentar. David F. Sandberg parece acreditar no poder da história, no poder de entender os atos heroicos e em qual forma esses – e a vilania – são parte presentes e intrínsecas aos seres humanos. Porém, não aos seres poderosos. Esses, apesar de seus dilemas mundanos, são mais do que simplesmente o comum, são uma representação. Billy Batson, assim, não é representativo na sua figura humanoide, porém o Shazam representa a esperança e a crença no mundo.