Crítica – Boca de Ouro
Existe de algo de fascinante em ver uma obra realizada nos dias de hoje, baseada em material de outros tempos, que abrace todas as características de algo que, para gostos atuais, pode parecer um tanto de mal gosto. Boca de Ouro, nova versão de Daniel Filho da obra de Nelson Rodrigues, é uma obra dessas, na qual absorve com gosto todas as idiossincrasias do conteúdo original, sem se preocupar em atualizar certas temáticas.
O longa conta a história do bicheiro Boca de Ouro (Marcos Palmeira), o mítico bicheiro de Madureira, mulherengo, charmoso e violento, que não conhece a mãe, que o pariu em uma pia suja de bar, o batizando com a água da torneira. Só duas coisas são certas na biografia deste homem: mandou tirar todos os dentes para colocar uma dentadura de ouro no lugar, e que morreu assassinado não se sabe por quem. Para contar a história de uma figura tão importante, o repórter Caveirinha (Silvio Guindane) recorre a ajuda de Dona Guigui (Malu Mader), ex-mulher do bicheiro, oferecendo ao jornalista três histórias que tudo e nada dizem sobre o distinto personagem.
A produção abre com tons de noir, sombras fortes, preto e branco e alto contraste, a única cor que aparece é o vermelho do sangue. É um tanto inesperado, mas combina com o material, afinal, nada mais noir do que ter como personagem principal alguém de moralidade dúbia. Entretanto, essa estética logo é abandonada ao chegarmos no cerne da história, sem que isso tenha algum motivo narrativo.
Talvez seja porque – apesar do início sisudo – a narrativa ganha tons de pastiche ao se tratar das conversas entre Guigui e Caveirinha, os momentos mais abertamente humorísticos do filme, ainda mais com a presença de Agenor (Guilherme Fontes), o abobado atual marido de Guigui. Seria interessante se o longa trabalhasse essa estética situacional, em que cada momento diferentes técnicas são empregadas de acordo com a versão da história. Mas não é o que acontece, tornando a decisão de começar de modo visualmente tão distinto, somente para trocar para algo menos estilizado, um tanto injustificada.
Cada uma das três histórias apresentam Boca de Ouro de um modo diferente, de acordo com o humor da personagem de Malu Mader, e cada segmento tem o seu próprio tom ou gênero, que é melhor definido pela relação entre Celeste (Lorena Comparatto) e Leleco (Thiago Rodrigues). Esses, casal que sempre se envolve com o personagem titular, e menos pelo bicheiro, no qual age de modo praticamente igual em todas, apesar de sempre ser divertido de assistir. Comparatto é a mais versátil, sendo a que mais muda entre as versões, indo de uma boba puritana, até uma sádica rancorosa.
Boca de Ouro poderia ser mais, o estilo Rashomon de se contar uma história abre muitas possibilidades narrativas, porém Daniel Filho parece se contentar com o básico. Não dá pra dizer que não funciona, já que é uma produção inegavelmente divertida, especialmente por ser tão interessada em ser algo menos ajustado às sensibilidades atuais. Uma cena em que mulheres exibem os seios para ganhar um colar de esmeraldas pode ter sido divertidíssima por si só nos anos 60, em 2019, é engraçado que algo tão abertamente machista esteja sendo exibida de modo tão despreocupado.
Esse texto faz parte da nossa cobertura do Festival do Rio 2019