50 anos em (alguns) detalhes, de Roberto Carlos

Quem ligasse o rádio nos anos 70, seguramente esbarraria com uma música de Roberto Carlos, seja as cançõe que embalaram a Jovem Guarda, seja os novos sucessos românticos que marcariam essa fase e que teve no disco de 1971 seu ápice de sucesso e de realização. É sobre os 50 anos deste disco importante na carreira de Roberto e para a música brasileira que falaremos.

Roberto já vinha produzindo uma lenta mudança de postura tanto em seus discos anuais quanto no palco. Alguns críticos localizam no álbum O Inimitável (1968) como seu pontapé inicial na toada romântica mais adulta que lhe ratificaria o apelido de Rei. Nesse disco, o primeiro depois que RC sai do programa Jovem Guarda, já se ouve baladas românticas menos ingênuas que aquelas que ele cantava no programa da TV Record.

Já nos palcos, com a presença de Miéle e Ronaldo Bôscoli, Roberto formataria seu estilo de show, com músicas se alternando com pequenas histórias e comentários. Isso sem falar na marca registrada do Rei: o seu bailado com o microfone durante a apresentação. Roberto continua com o mesmo estilo de show até hoje, fazendo comentários antes das músicas, atiçando a plateia e assim por diante. Tudo isso antes dele estrear seu especial na TV Globo em 1974. Roberto Carlos deixava de ser o Rei da Juventude para tornar-se o Rei da música brasileira.

Nesse itinerário de lenta transformação de imagem e de repertório é que surge o disco de 1971. Vamos a ele.

O álbum tem a capa icônica de uma espécie de desenho do cantor com o semblante sério e meio olhando pro lado (que ele retornaria em estilo mais sombrio no disco do ano seguinte). Com 12 músicas divididas em 6 para cada lado do LP e produção capitaneada pelo nome forte da gravadora e gravado boa parte nos EUA, o disco prima pela afirmação de um intérprete qualificado e uma dupla de compositores que faria história, Roberto-Erasmo (que assinam 6 das 12 músicas).

Ele abre com a grande música romântica de Roberto até hoje, “Detalhes”. A letra já é patrimônio nacional e não vale a pena interpretá-la. Porém, uma história ajuda a contextualizar e entender a amizade da dupla que a assina e o gênio característico de Roberto Carlos. Num dia, ele pega o violão e arranha alguns versos, mas logo o sono bate e ele os guarda num gravador caseiro. No dia seguinte reclama da qualidade dos versos que ele mesmo compôs e pensa “Será que eu bebi ontem, bicho?”. Após retrabalhar os versos iniciais e chegar a um ponto que lhe agradava (Não adianta nem tentar me esquecer/ durante muito tempo em sua vida eu vou viver…), RC, então, chama Erasmo Carlos que trabalha animadamente os versos até que chegam no que consideram a versão final. Roberto chama sua mulher à época, Nice, e canta para ela apaixonadamente a música que acabara de compor e com a certeza de que escrevera um grande sucesso. Porém, o famoso detalhismo (chamemos assim) do Rei trouxe um incômodo para a palavra “ronco”.

Roberto então empreendeu a estratégia do teste final: apresentar a música sem fazer nenhum juízo e esperar a reação do ouvinte. Ele fez isso com a mulher, com o secretário, com a empregada, para sua banda e, finalmente, para o produtor. Todos eles ouviram a música com naturalidade. Roberto deu-se por vencido e desde então a considera sua música preferida. Até hoje especula-se quem seria a musa da canção ou quem seria o “cabeludo” que ele cita. Isso é nota menor perto de sua qualidade da canção e da durabilidade do sucesso de “Detalhes”. É digno de nota o arranjo sublime e suave que o maestro americano Jimmy Wisner produziu: sua introdução marcante não escapa a ninguém até hoje.

A veia romântica do disco continua com “De Tanto Amor” que já tinha feito um grande sucesso na voz de Claudette Soares e que o extinto Jornal do Brasil incluiu na lista das “dez mais lindas canções brasileiras”. A atmosfera de romance continua com a balada “A Namorada” (Maurício Duboc-Carlos Colla) e com a incrível Amada Amante, Roberto e Erasmo colocam uma relação extraconjugal nas vitrolas da família brasileira em pleno anos 70. Ainda desfila o bolero romântico de melodia suave, “Se Eu Partir” (Fred Jorge). Com o foxtrote “I Love You”, o Rei intencionalmente imposta sua voz para, tanto homenagear a Era de Ouro da Rádio, quanto para auto ironizar sua canção cuja letra é uma coleção de pieguices de namorados apaixonados.

Roberto aposta na pegada soul (já presente em discos anteriores) de “Eu Só Tenho Um Caminho”, de Getúlio Côrtes, compositor já muito visitado pelo repertório do Rei na fase da Jovem Guarda. E não abandona o rock com a “Você Não Sabe o Que Vai Perder” (Renato Barros), que poderia muito bem constar em qualquer disco de sua fase anterior. Nesse disco, a veia biográfica do compositor despontaria com “Traumas” (e teria seu ápice na canção “O Divã”, do álbum seguinte). A canção soturna de tom psicológico e autobiográfico coloca a história do cantor em perspectiva, fala de traumas que o adulto ainda carrega e faz alusão sutil ao acidente que sofrera quando criança: Falou dos anjos que eu conheci/No delírio da febre que ardia/Do meu corpo que sofria/Sem nada entender. Nessa faixa fica clara a maturidade do canto de Roberto e sua capacidade de emocionar sem o histrionismo que vigorava antes – sua fase de cantor de Bossa Nova e aprendiz de João Gilberto dá margem para traçar uma genealogia.

Existe, porém, um sujeito oculto nesse álbum de Roberto Carlos: a política. É público e notório seu afastamento do tema quando sugerido. Mas a pecha de alienado é complexificada com a presença de um nome na ficha técnica do álbum de 1971: Caetano Veloso.

Caetano foi preso em 1968 e, depois de passar por várias detenções, acabou, junto de Gilberto Gil, exilado em Londres. Roberto foi visitar a dupla na capital inglesa em novembro de 1969. Era a primeira oportunidade que tinham para conversar demoradamente e a oportunidade de Roberto dizer aos tropicalistas da gratidão que ele sentia pelo trabalho de revalorização de sua música. Caetano, emocionado com a visita do Rei, perguntou se ele tinha músicas novas. Prontamente Roberto pegou o violão e cantou “As Curvas da Estrada de Santos” que levou o baiano às lágrimas. Caetano entendeu a visita de Roberto com a presença simbólica do Brasil visitando-o em meio ao exílio e chegou a publicar textos sobre a visita de Roberto no jornal O Pasquim. Roberto adorou a visita e dias depois compôs “Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos”.

Quando Caetano voltou ao Brasil para visitar os pais, em 1971, Roberto mostrou a ele a canção que prontamente foi aprovada e gravada no disco que estamos esquadrinhando. O fato interessante é que a história da música ficou oculta por anos, não se podia dizer aquela altura que a música era uma homenagem a um exilado brasileiro. Se assim o fosse, a música seria proibida e Roberto não poderia fazer sua homenagem – mesmo que em silêncio cúmplice. Mesmo após o fim da ditadura militar, nem Roberto nem Erasmo revelaram a história. Caetano, então, em seu show Circuladô, 21 anos depois, antes de cantar a música contou sua verdadeira história dizendo: “…uma vez no exílio, chegavam até nós, saídas de regiões não menos profundas do ser do Brasil, vozes que nos diziam (nos tentavam dizer) que isso não era tudo. Esta canção, por exemplo, que eu vou cantar agora, foi composta, para mim, por esta razão”.

vELOSO ainda assina outro clássico que Roberto gravou no mesmo álbum, “Como Dois e Dois”. Em setembro de 1970, RC recebe um fita da música cantada ao violão pelo próprio Caetano Veloso. A letra abriga referências ao romance 1984 de George Orwell e a poesia de Ferreira Gullar, com forte temática social. Mas nada é mais interessante que em pleno governo Médici que entulhava o país de propaganda ufanista, o cantor mais popular do Brasil cantava a música que tem o verso “Tudo vai mal, tudo/ tudo mudou não me iludo e contudo” e cujo refrão é “Meu amor/Tudo em volta está deserto/Tudo certo/ tudo certo como dois e dois são cinco”. Caetano disse que fez essa canção para ele e que queria ouvir da boca de Roberto Carlos aquelas coisas como uma espécie de afirmação de Brasil. Um ano depois de muito pensar sobre a canção, Roberto a gravou e foi um tremendo sucesso.

Ainda na política, mas nem tanto. Roberto gravou o soul “Todos Estão Surdos”. A música mistura a religiosidade que Roberto sempre cultivou (em disco anterior RC gravou também em ritmo soul o hino gospel “Jesus Cristo”) junto com referências ao pacifismo e ao sentido primeiro dos ensinamentos de Jesus, o amor. Por essa falta de entendimento da sociedade dos ensinamentos cristãos, Roberto o tempo todo clama a volta de Jesus Cristo para ensinar tudo de novo. Além disso, Jesus aparece como uma espécie de hippie cabeludo que prega paz e amor. Resquícios da atmosfera dos anos 60.

Seja como for, não há intenção de enquadrar Roberto Carlos e seu disco dentro da fatídica gaveta de “música de protesto”. Muito menos limpar a sua barra, como se diz. Roberto sempre quando instado a falar sobre política se demonstra um sujeito conservador com forte referência a sua religiosidade. Mas talvez sirva de exemplo para nos interrogar sobre o impulso recente de homogeneizar as produções e taxá-las. É possível um cantor romântico de massas cantar que tudo em volta está deserto. Com esse disco, o Rei escreveu mais um capítulo da história da música brasileira. Nesse ano, em que pese todas as perdas e a atmosfera malcontente, esse disco completar 50 anos e seu intérprete 80 anos em plena atividade é de se comemorar. Sei que o artista divide opiniões e atiça paixões (em todos os sentidos), mas glosando um pouco Caetano Veloso, Roberto Carlos é o Brasil queiramos ou não.

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