Opinião | Scorsese e Marvel: Alguém tem razão?

A cultura Pop, do jeito que entendemos o termo atualmente, composta por filmes de grande orçamento, quadrinhos, jogos e etc., possui um enorme nervo exposto, na qual, se tocado, vira motivo de grandes debates e discussões: ela quer, mais que tudo, que seus produtos sejam considerados “arte”, levados a sério. Em 2010, o famoso crítico de cinema Roger Ebert, afirmou, categoricamente, que “video games nunca poderão ser considerados arte”, gerando enorme controvérsia na época entre os gamers, e uma afirmação em que nunca foi superada de fato pelo meio. Recentemente, a cultura Pop se encontra em outro grande debate, dessa vez, acerca dos filmes de super-herói. Tudo começou devido a um comentário por parte de Martin Scorsese enquanto promovia seu novo filme, The Irishman. A frase que ganhou as manchetes foi a de que o diretor afirmou que os filmes da Marvel “não são cinema”.

Mas claro, a declaração de Scorsese apresentou um pouco mais de nuance do que esse trecho  inflamatório – por isso com mais potencial de viralizar. A declaração completa, feita durante uma entrevista para a revista Empire, é a seguinte:

“Eu não os assisto. Eu tentei, sabe? Mas isso não é cinema. Honestamente, a coisa mais próxima que consigo pensar sobre eles, tão bem feitos como eles são, com os atores fazendo o melhor dentro das circunstâncias, são parques de diversão. Não é o cinema de humanos tentando transmitir experiências emocionais e psicológicas para outro ser humano.”

Dias depois, ele reafirmou essa ideia de cinemas se tornando parques de diversão, dessa vez para o The Hollywood Reporter, onde ele diz:

“Cinemas se tornaram parques de diversão, e tudo bem! Mas desde que eles não invadam todo o resto. É bom para aqueles que gostam desse tipo de filme, e eu admiro o que eles fazem. Não é o meu tipo de obra, realmente não é. Está se criando um tipo de audiência que acha que cinema é isto.”

Essas duas falas do renomado diretor já causaram, por si só, grande discussão nas redes sociais, com outros cineastas como Joss Whedon (Os Vingadores) e James Gunn (Guardiões da Galáxia) lamentando que o cineasta tenha essa visão. Whedon, em particular, achou injusto a declaração que longas de herói “não transmitem experiências emocionais”, citando justamente o trabalho de seu colega, Gunn como prova do inverso. Jogando mais lenha na fogueira, o mais recente capítulo dessa história pertence a Fracis Ford Coppola, na qual disse, sem meias palavras, que os filmes da Marvel são “despreziveis”.

Entrar em uma discussão se filmes baseados em histórias de heróis são “cinema” ou não é perda de tempo, e é dificil escapar do elitismo ao engajar em um debate desse jeito. Obras feitas para o grande público não são, inerentemente, melhores ou piores do que produções “cult”. Além disso, essa não é exatamente a questão, acredito que o que preocupa Scorsese e Coppola não são se esses trabalhos são cinema, mas sim de que tipo de cinema está tomando conta da sétima arte daqui para frente.

Claro, estranho seria se esses dois cineastas não tivesse essa preocupação, vindo de onde vieram. Ambos surgiram nos início dos anos 70, durante o movimento da Nova Hollywood, que, apesar de ser financiado por grandes estúdios, buscava uma realização mais autoral, em que não se encaixasse tanto dentro de uma lógica de mercado. A era dos grandes épicos (especialmente os faroestes) se encerrava e, em seu lugar, filmes menores, mais pessoais e “sujos”, ganhavam espaço.

Agora, o cenário se inverte. Tanto os estúdios, quanto as redes de cinema, querem se encher da mais nova franquia megalomaníaca, no qual tem como ambição arrecadar um bilhão na bilheteria. Enquanto isso, produções mais modestas acabam indo para plataformas de streaming e são, na maioria das vezes, esquecidas. Vale lembrar que, aqui no Brasil, 90% das salas de cinema do país foram ocupadas por Vingadores Ultimato. O problema é maior que somente filmes de herói. Durante o lançamento de Os Últimos Jedi, a Disney forçou muitos cinemas menores nos Estados Unidos a aceitar demandas absurdas para que estes pudessem exibí-lo. Vendo essa situação, seria estranho que os artistas que surgiram com o declínio de algo similar com o que estamos vivendo não tivessem uma visão crítica sobre essas obras.

Isso sem falar dos filmes em si. O foco das declarações foi voltado mais especificamente para as produções da Marvel, então, entenda meu comentário mais sobre eles do que para o gênero como um todo. Apesar de gostar dos longas desse universo (meu favorito é, curiosamente, Guardiões da Galáxia Vol.2), não posso negar sua natureza um tanto descartável e intercambiável. Mesmo eles serem comandados, às vezes, por cineastas com uma visão singular, ela é sempre secundária a necessidade de formar um universo coeso por mais de 20 filmes, o que  – por si só – é uma proeza. O problema é o fato de isso acabar homogenizando tudo, e seus arcos dramáticos, na qual se iniciam em um, são concluídos de modo apressado em outro. Me lembro de ter assistido a Guerra Civil, por exemplo, e imaginar como esse conflito afetaria o universo como um todo, somente para ver a cisma entre Capitão América e Homem de Ferro ser resolvida rapidamente, enquanto os Acordos de Sokovia foram deixados para trás.

Por trás do sensacionalismo causado pelas declarações de Martin Scorsese, existe uma preocupação real e muito séria com o futuro do cinema. Poucas pessoas têm tanta paixão pela arte quanto ele, que financia diversos esforços de restauração de obras esquecidas do cinema. É compreensível que muitos se sintam atacados pelo dito por ele, já que as produções do Universo Cinematográfico da Marvel correspondem a realização do sonho de ver seus heróis na tela grande. Entretanto, talvez não seja uma boa ideia desconsiderar a opinião de uma das pessoas que ajudou o cinema a ser o que é. As falas parecem não terem sido as mais certas, contudo a discussão merece – e deve – ser válida cada vez mais.

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