Crítica – Deus Tem AIDS

A AIDS é uma doença cercada de um imaginário muito específico, que marca todos aqueles que a carregam. Isso não veio do nada, evidentemente: Quando a doença surgiu, a mídia alardeava aos quatro cantos a batalha contra essa coisa perigosíssima que é a doença, o que trouxe também a ideia de que os próprios portadores da doença são, então, perigosos, que devem ser afastados dos “saudáveis”, além de, é claro, a perspectiva da doença como algo que somente afeta a população LGBT.

É da construção desse estereótipo que Deus Tem AIDS começa, com uma colagem de áudios sobre como a imprensa tratava o assunto, a doença como uma sentença de morte definitiva, imagem essa que os diretores Fábio Leal e Gustavo Vinagre se esforçam em desfazer no documentário, por meio de oito histórias de pessoas soropositivas, relatando a vivência com a doença, e como encontraram maneiras de tirar o estigma relacionado a ela.

Cada um dos entrevistados tem uma relação muito única com a doença. Uma delas, por exemplo, nasceu com, e o diálogo em torno da doença a levou a crer que não teria muito tempo de vida, a morte sendo algo muito mais presente em sua vida desde cedo, e que tudo precisava ser vivido rápido, mas ao observar que havia conquistado tudo que queria, começou a repensar sua relação com a AIDS, passando a fazer performances artísticas que reafirmam sua vida, andando pelas ruas com uma placa eletrônica escrito “eu não vou morrer”.

“Criar novas imagens sobre a AIDS”, essa frase é dita por um dos entrevistados que se encaixa perfeitamente como descrição de Deus Tem AIDS, sendo esse o principal mote nesse mergulho na vida das pessoas soropositivas que o longa retrata, especialmente por meio da arte, o principal espaço encontrado pelos personagens para isso. Algumas das performances chegam até mesmo a ser extremamente chocantes, mas que rompem com a ideia da pessoa soropositiva como alguém particularmente frágil, e sim como alguém transgressor, e também plenamente confortável com os todos os aspectos do seu corpo.

Se não cito os nomes dos entrevistados, é porque o próprio filme não os identifica, uma decisão que faz sentido em um longa tão preocupado com o corpo e suas expressões, tão distintas. Suas ações bastam para que aconteça conexão com suas histórias, que falam por si.

Como o nome já entrega, Deus Tem AIDS busca romper com as pré concepções sobre AIDS e pessoas soropositivas de forma afirmativa, e para realizar isso, dá espaço para que essas pessoas falem e se expressem da maneira que acharem melhor. Pode não ser formalmente muito empolgante, adotando, fora das cenas de performance, o formato mais “básico” de um documentário, mas permite que esses momentos artísticos bem íntimos se destaquem. Não é questão de “dar voz” a ninguém, mas somente reconhecer que essa voz já está falando, e há algum tempo.

Esse texto faz parte da nossa cobertura do Olhar de Cinema 2021

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