Crítica – Undine
O realismo fantástico é uma corrente e forma da produção da literatura que demarcou boa parte dos autores latinoamericanos durante o século XX. Nomes de peso, como Gabriel García Marquez, Mario Vargas Llosa e Isabel Allende se utilizaram desse tipo de narrativa literária, normalmente como metáforas. A ideia é bem simples e óbvia: consiste na junção de histórias reais, do cotidiano, que poderia acontecer com qualquer um, mas que possuem elementos de fantasia ou até ficção-científica, enfim, algo “irreal”. A historiografia destaca que autores europeus também se utilizaram de questões parecidas, mas algo menos direto, sendo o caso mais clássico de Edgar Allan Poe.
O cineasta alemão Christian Petzold demostrou, em sua produção mais recente, algum tipo de conexão com essas histórias. Um dos exemplos é Em Trânsito, em que aborda uma realidade da França dominada por nazistas, mas como se estivessemos vendo algo que está acontecendo de forma contemporânea. No entanto, em Undine, seu mais recente trabalho, é talvez o local em que vemos mais elementos desse tipo presente. Mas, longe de ser uma homenagem. É em uso exclusivamente sobre o poder das histórias e do controle pessoal das narrativas por parte desses personagens.
Na trama, acompanhamos a trajetória de uma mulher que trabalha dentro da cidade de Berlim como historiadora. Por lá, ela dá palestras diversas sobre toda a vida e o desenvolvimento urbano que aconteceu na capital alemã ao longo do tempo. Apaixonada por um homem, ela é abandonada. Ao ter contato com Christoph (Franz Rogowski) que assistiu a sua palestra, Undine (Paula Beer) parece começar a ter contato com algo mágico, como se um antigo mito estudado tivesse a alcançado.
De certa forma, a ideia e concepção inicial do filme pode soar até um pouco boba. Mas é esse elemento que transforma Undine em uma história sobre histórias. Em certo ponto, é até possível lembrar o feito de M. Night Shyamalan em A Dama na Água, ao celebrar as possibilidades da fantasia. Ou até mesmo À Beira da Loucura, de John Carpenter, que discute os vários caminhos possíveis e impossíveis do terror. A construção desses universos é justamente na forma de explorar o absurdo desde o primeiro momento. Enquanto isso, o longa aqui discutido, parece querer caminhar dentro de um âmbito da descoberta desse mundo. E isso fica muito presente quando uma mulher aponta o local em que eles estão em uma maquete e a protagonista se vê nesse mesmo espaço.
É curioso como a narrativa vai sempre abordando os entornos desse mundo mágico que quase nunca dá as caras de uma vez. Ele aparece sempre como uma questão que permeia a conexão entre Undine e Christoph, como se realmente fosse uma conexão até meio “mágica”, diferente da frieza em que o relacionamento termina na primeira cena. Como uma criança, a direção de Petzold transcorre sempre os pequenos elementos de forma a colocar eles como se fossem uma grande brincadeira. Mas, novamente, o realismo sempre toma conta para a tragédia e o ruim da própria humanidade acontecer. Sendo um mergulhador, é interessante também o contraste das duas sequências que Christoph observa as cenas gravadas no mar com suas colegas de trabalho. Na primeira, na descoberta e na crença de algo que parecia impossível ser captado. Na segunda, em uma descrença até de si mesmo.
O cineasta parece até mesmo observar toda essa construção de um jeito lúdico. Enquanto isso, a realidade (por exemplos, os momentos em que a cidade de Berlim é mostrada pelas maquetes) temos uma transformação na busca de ângulos e de um certo deslumbramento. Desse jeito, é como se estivesse apontando que esses dois elementos – a fantasia e a realidade – estão misturados a todo o instante. É impossível, praticamente, saber o que denota cada um deles. Por isso mesmo, está em beleza em entender se podemos acreditar em tudo ou não.
Christian Petzold se questiona a todo tempo nas escolhas de uma fábula infantil e de uma tragédia dos relacionamentos. Impossível distanciar os dois, já que a humanidade estará presente em toda parte. O ponto de Undine é justamente compreender esse universo como parte única de quem somos, e como suas várias facetas estarão conectadas a ele. Desse mesmo jeito, é como se o diretor realmente se igualasse aos grandes nomes citados anteriormente da literatura. Mas não por querer, e sim pelo poder de acreditar nas histórias.
Esse texto faz parte da nossa cobertura do Festival do Rio 2021