Crítica – Cidade Invisível
Apesar da trilogia do Batman de Christopher Nolan ter sido um marco no modo como as pessoas enxergavam a cultura Pop, um de seus legados mais duradouros acabou sendo negativo, que a ideia de que, para algo ser levado a sério, ele deve necessariamente ser “sombrio”. Não que os filmes do Nolan sejam realmente assim tão sombrios, mas nada impediu dessa lógica ser levada ao extremo nos filmes seguintes de Zack Snyder para a DC, e em outras produções desse universo – como esquecer o “Fuck Batman” no primeiro trailer de Titãs? – e também em outros trabalhos, como o Quarteto Fantástico de Josh Trank, que dava tons de body horror para a primeira família da Marvel.
Mas,tirando casos pontuais como Coringa em 2019, essa postura falhou em trazer grandes bilheterias e grandes obras para a tela, e a Marvel, com seu ar mais otimista, saiu “vencedora” da história, e a DC já busca ares mais leves para seus filmes. Mas aparentemente as mentes por trás de Cidade Invisível não receberam esse memorando ou simplesmente não se atentaram a essas mudanças, e decidiram dar esse tratamento ao folclore brasileiro, e agora temos um curupira que afoga suas mágoas com cachaça.
Na série, o protagonista é Eric (Marcos Pigossi), agente ambiental que perdeu sua esposa em um incêndio florestal, evento cuja investigação se tornou uma obsessão pessoal, em detrimento da relação com sua filha, Luna (Manu Dieguez). Um dia, ele recebe uma ligação de alguém informando que tem informações que podem ajudá-lo a descobrir quem causou o incêndio. Ao chegar no local de encontro, no entanto, ninguém aparece. No dia seguinte, Eric se depara com uma cena inusitada na praia do Flamengo: um grupo de pessoas tentando retirar um boto cor de rosa que morreu na areia. Usando de sua autoridade, o agente se encarrega de despachar o corpo do animal pelos meio apropriados, só para ver o animal se transformar um homem dentro da caçamba de sua picape. A partir disso, Eric passa a se envolver em um conflito que vai além do mundo dos homens, envolvendo entidades sobrenaturais e empresas que desejam devastar uma floresta.
Nessa narrativa, as lendas do folclore ganharam uma roupagem mais “urbana”. O Saci (Wesley Guimarães) e o Curupira (Fábio Lago) agora são moradores de uma ocupação na Lapa. Essa talvez seja a modernização mais inspirada, já que garante que o “invisível” do título tenha duplo sentido, já que a invisibilidade é dupla, além de serem entidades de um mundo paranormal, eles também são pessoas invisíveis para a sociedade normal. Não que a série explore muito essa questão além de uma estética mais contemporânea, já que outros personagens não seguem o mesmo molde. Inês ( Alessandra Negrini), uma versão da Cuca, é dona de um bar/boate hipster na Lapa, não exatamente uma posição discreta. Assim, a gota de boa ideia é desperdiçada.
Cidade Invisível castra a si mesmo de potencial ao buscar uma estética evidentemente mais americanizada do que brasileira, chegando ao ponto de, já no primeiro episódio, ter um plano claramente inspirado em Garota Exemplar, de David Fincher. Somente a trilha sonora, pelo menos em um episódio, tenta trazer algo mais nacional para o cenário. Assim, características mais profundas de nossas lendas não chegam às telas, e o que temos é um Deuses Americanos, ou até mesmo Penny Dreadful, desnutrido.
Somado a isso, os personagens são subaproveitados, mesmo que bem com boas atuações, com destaque para o trabalho de Fábio Lago como Curupira, que chega a ser memorável quando lhe é permitido de fato incorporar a figura da lenda, com os outros sendo esquecidos de acordo com a necessidade da narrativa. O Saci simplesmente desaparece por uns episódios, enquanto Tutu (Jimmy London), cuja presença é tão marcante ao longo da trama,é despachado sem grandes confusões.
Cidade Invisível é mais um Produto Original Netflix, ou seja, pasteurizado e de fácil assimilação para o público internacional da plataforma, não aposta nem no encanto que o contato com um mundo mitológico pode causar, é tudo muito “sério” e “adulto”, com xingamentos e a ocasional nudez. É o nosso folclore para gringo ver.