Crítica – Medusa

A história de Medusa, o ser mitológico, é bem conhecida por qualquer um com o mínimo de interesse em mitologia grega. Apesar das variações, uma coisa permanece, o da bela mulher amaldiçoada por uma ciumenta Atena, e condenada a viver com cabelos transformados em cobra e a transformar em pedra qualquer um que ouse olhar para ela. Ao longo dos anos, essa narrativa ganhou várias interpretações, e a imagem da Medusa se tornou cara a certos movimentos feministas, um símbolo da fúria feminina.

A fúria feminina certamente está no centro de Medusa, o novo longa da brasileira Anita Rocha da Silveira, mas longe de ser algo feminista, pelo menos a priori. Logo no começo do filme, um grupo de mulheres, mascaradas, persegue outra em uma rua vazia, lançados xingamentos na direção da vítima, dos mais comuns, tipo “puta” ou “piranha”, até alguns mais específicos, como “Jezebel” e ameaças de crucificação. A emboscada logo ganha contornos de evangelização, quando o bando força a vítima a “aceitar Jesus”. Tudo isso gravado por um celular para ser colocado nas redes sociais, é claro. 

Ao se afastarem da agredida, as máscaras começam a serem tiradas, uma a uma, até que a protagonista Mariana (Mariana Oliveira) é revelada, e a câmera demora em seu rosto. Uma mulher jovem, negra, bonita. As aparências importam muito no longa de 2021. Sendo mais específico, é importante ter certo tipo de aparência, logo, é difícil não reparar no cabelo alisado a chapinha da personagem.

Há uma certa progressão temática aqui do que foi visto em Mate-me Por Favor, primeiro longa da diretora lançado em 2015. Já em Mate-me havia a presença do Evangelismo, mesmo que não levado muito a sério por alguns personagens daquele filme. Já nesta nova produção, a religião é algo totalizante, ocupando cada faceta da vida dessas pessoas, e também do país. O discurso do pastor Guilherme (Thiago Fragoso) deixa claro que a separação entre política e religião não existe mais, “quanto tempo a gente perdeu achando que a Igreja não tinha que decidir os rumos da nação?”: declara em seu púlpito, e pede que todos rezem com ele. Na plateia, os rostos em contemplação, com certa alegria, contrastam com o que está acima deles, a milícia religiosa Vigilantes de Sião, sérios, nas sombras, sem individualidade.

Esses vigilantes, junto com o pastor, são a principal presença masculina em Medusa. É interessante observar que, novamente, Anita faz um contraste muito forte entre o comportamento masculino e feminino, mesmo agora quando os dois lados estão, em tese, “do mesmo lado”. Os vigilantes são soldadinhos de chumbo, sempre de uniforme, raramente individualizados de qualquer forma, e quase sempre vistos em treinos coletivos. De certa forma, é quase patético, se a violência que eles representam não fosse bem real. Já as mulheres, mesmo que adeptas a mesma ideologia, são agentes muito mais ativos na história, mesmo que a religião peça submissão, especialmente Mariana, é claro, e Michele (Lara Tremoroux), melhor amiga da protagonista e líder do grupo – uma das figuras chaves na narrativa.

Outro contraste que move a obra é o da suposta espiritualidade dessa religião que tomou conta do país, que tanto diz se importar com o reino dos Céus, mas acaba não conseguindo deixar de reparar nas coisas materiais, nas aparências. Mariana perde o emprego em uma clínica de estética por conta de uma cicatriz no rosto, resultado de um ataque noturno mal sucedido. Ao pedir ajuda para seu pastor, ele sem nem a ouvir começa a rezar para que a marca facial suma, já Michele produz conteúdo para internet focado em beleza, do tipo “como fazer uma selfie que agrade ao Senhor”. Até mesmo o resultado das incursões noturnas das mascaradas são para aparecer, “olha, o vídeo recebeu 10 mil likes!”, diz uma das meninas sobre o vídeo gravado naquela cena inicial.

É importante também notar aqui o forte uso do neon, já presente em Mate-me, mas aqui ganha certa conotação de artificialidade, não sendo a toa que o palco da Igreja é recheada deles, além de claro, do espaço em si ter um quê de não natural, todo escuro, como se existisse em um espaço a parte. A jornada de Mariana a leva para longe dessa artificialidade, conforme ela compreende sua posição no mundo. Mais natural, desorganizado, vai ficando o ambiente ao seu redor. O seu despertar definitivo acontece em uma floresta, assim como o de outras personagens.

Assim, pouco a pouco, a artificialidade que oprime aquelas mulheres perde seu espaço, a maquiagem que esconde os machucados começa a sair, e aquela fúria, antes dirigida para outras mulheres, agora é ressignificada, compartilhada. O grito de raiva acontece, súbito somente para que não prestou atenção, sem sentido para quem não se importa, mas cheio de sentido e força. Medusa se mostra potente nisso.

Esse texto faz parte da cobertura do Festival Internacional de Cinema de Toronto 2021

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