Crítica – Um Casal

A carreira do documentarista Frederick Wiseman foi marcada por um olhar para as instituições. Seu último filme, City Hall, ao longo de suas quatro horas e meia de duração, observa uma prefeitura americana num período de tempo onde nada de excepcional acontece, exceto tudo, valorizando o trabalho público no seu cotidiano. Não há entrevistas ou coisas do tipo, somente os acontecimentos do dia na prefeitura de Boston.

Desse modo, Um Casal segue a tendência da filmografia do diretor, afinal, o casamento não deixa de ser uma instituição, que afeta e é afetada pela sociedade. A diferença reside na maneira como Wiseman escolhe olhar para isso, pois ao invés de analisar um casal qualquer, há um recorte bem específico: o par em questão se trata de Liev e Sofia Tolstói.

Mais específico ainda, se trata da visão do casal por meio das palavras de Sofia, aqui interpretada pela atriz Nathalie Boutefeu. Faz todo sentido, ao se falar de Tolstói, não se fala nela, mas somente sobre ele, todas as livrarias carregam exemplares de seus livros, lançados e relançados em edições luxuosas e estudados com afinco por diversos acadêmicos ao redor do mundo. Ele já tem espaço o bastante, sua voz é ouvida a todo momento.

A fonte do monólogo de Sofia são as cartas que ela trocou ao longo dos anos com o marido, relatando as alegrias e dissabores, especialmente esse último, em se relacionar com um dos maiores escritores do século XX. Genialidade possível justamente por ter uma mulher cuidando de todos os afazeres domésticos, como ela bem denuncia: “Em nenhum momento foi buscar água para seu filho doente para que eu pudesse descansar”.

Entre as sessões de monólogo, Wiseman mostra a natureza do local onde Sofia está, e se demora longamente em seus movimentos, no bater das ondas, no vento que dobra as folhas das árvores. É como se ele nos desse um tempo para sentir o que está sendo dito, absorver as contradições daquele relacionamento que ia do céu ao inferno.

Em outros textos sobre Um Casal, muito se discute sobre Wiseman “inovar” aos 90 anos, lançando uma obra tão diferente do seu modo de operar, mas será tão diferente assim? Se trata de uma atriz interpretando outra pessoa, claro, o que foge da ideia de documentário de “captar o real”. No entanto, as palavras e os sentimentos não deixam de ter sua realidade, expressa por meio de Nathalie. Há quem diga que documentário se trata mais de um “tratamento criativo do real”, uma definição perfeita para o filme. Talvez menos um “desvio” do documental, Wiseman proponha uma nova maneira de documentar, que escapa definições fáceis de gênero. 

 Esse texto faz parte da nossa cobertura do Festival do Rio 2022

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