Crítica – Os Piores

Nas quatro primeiras cenas de Os Piores conhecemos os quatro protagonistas que serão “ouvidos” nessa história. Para isso, realmente eles ganham voz nesse primeiro momento. Lily (Mallory Wanecque), Ryan (Timéo Mahaut), Jessy (Loïc Pech) e Maylis (Mélina Vanderplancke) são figuras problemáticas de um subúrbio francês. Eles, todos com a alcanha de “deliquentes” e famílias desfiguradas, são chamados para fazerem um teste e participarem da gravação de um filme. Esse, que irá também se passar na região e contar histórias parecidas com as que os personagens vivenciaram. A ideia do diretor desse filme, Gabriel (Johan Heldenbergh), é trazer a realidade a tona.

A trama básica do longa parece com os bastidores da gravação de muitos outros reconhecidos. Talvez o exemplo mais próximo para nós, brasileiros, seja Cidade de Deus, que contou com atores amadores e que, na maior parte dos casos, viviam realidades difíceis. Esse conceito gera não apenas uma tentativa de reproduzir uma realidade, mas acaba sendo também a construção de um esteriótipo dela mesma. E, acima de tudo, com as mesmas personas que sofrem todos os dias. A reprodução disso faz apenas a imagem desse bairro ser “manchada”, como diz uma das moradoras da região em um determinado momento. Por isso, as diretoras Lise Akoka tentam, em uma espécie de estudo de caso, entender até que ponto seria válido registrar a tragédia como forma de ficção.

Para fazer isso, Os Piores foca bem menos nesse processo da produção desse longa e mais na realidade palpável, por assim dizer, de seus protagonistas. A troca de olhares e visões em diversos momentos – como a chegada em casa de Lily ou a conversa com a irmã de Ryan – geram um sentimento de pertencimento nesse ambiente e, ao mesmo tempo, solidão. É quase como se a obra buscasse entender se essa retratação de um sofrimento já onipresente acabasse causando ainda mais dor ou um olhar de alento. E é interessante como o filme não quer dar respostas, a busca dele é apenas, em uma visão quase etnográfica, observar e tentar entender.

Por isso, esse mundo vive quase um looping para cada uma das vidas. Eles brigam, chegam em casa e ficam sozinhos, disputam espaço com os amigos e tem diversas rivalidades. É um ambiente caótico, e a forma como Akoka e Gueret filmam demonstra bem essa sensação. É uma câmera que sempre contrasta os closes em mãos, olhos, bocas com planos extremamente abertos. Ao mesmo tempo que há uma imensidão de mundo, também existe uma prisão pelo qual eles estão submetidos. As cenas iniciais, aliás, com o teste, refletem bem isso, ao serem tão múltiplas de um personagem para outro e de reações de um para outro.

O longa também tem um certo frescor quando gera os momentos de maior inflexão dos protagonistas – e, nesse sentido, especialmente Lily e Ryan – com outras personas do set de filmagem. A cena, por exemplo, que o diretor mostra a construção de um amor de Lily e Jessy dentro desse filme que está sendo feito, como maneira de gerar uma interação entre os dois para gravação do sexo, traz uma intimidade que nenhuma dessas figuras jamais teve. Nem a chance de se apaixonar, nem se verem como parte de algo. O íntimo, construído ali e realmente na gravação dessa sequência, é algo que sempre foi retirado deles, e por isso é tratado como uma coisa tão complexa.

Lise Akoka fazem em Os Piores uma grande observação sobre a filmagem da tragédia. É uma produção que busca menos o apontamento de dedos e mais uma tentativa de visualizar esse universo. Nesse sentido, é um longa que consegue, por essa fluídez e autenticidade muito grande, gerar uma conexão com os personagens em si. Eles se transformam em figuras reais, frágeis e, até mesmo, passíveis a serem lembradas. Nessa observação sobre o ato de filmar, é até curioso como o filme por ele mesmo também se transforma e vira uma grande teoria sobre a própria reflexão. Nesse looping, o que sobra é apenas o afeto e a possibilidade de sentir. Dos fechados personagens da primeira cena, até os mesmos transformados na última.

Esse texto faz parte da nossa cobertura do Festival do Rio 2022

Comentários

Cláudio Gabriel

É apaixonado por cinema, séries, música, quadrinhos e qualquer elemento da cultura pop que o faça feliz. Seu maior sonho é ver o Senta Aí sendo reconhecido... e acha que isso está mais próximo do que se espera.

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