Roma é uma obra-prima política e inesquecível de Alfonso Cuarón
O som da água escorrendo e a câmera focada nos ladrilhos de uma casa. Logo nos momentos inciais, o diretor Alfonso Cuarón já mostra a perspectiva com a qual irá abordar Roma, seu mais novo projeto: pela ótica na qual reflete o avião no céu, ou seja, do chão. Isso possui um significado metafórico, por ser uma personagem de camada mais pobre, mas também literal, devido ao seu olhar sempre se pautar pelo real. Ao contar a história de um ano da vida de uma empregada e seu relacionamento perante a família da chefe, o cineasta busca falar e contar muito mais do que apenas sobre uma pessoa.
O realizado aqui por Cuarón é um trabalho à parte. Não apenas pelo mexicano ser, além do diretor, roteirista, diretor de fotografia e editor, mas sim pela sua realização quase documental na abordagem. Na maioria dos instantes, sua câmera está parada em um ponto central, utilizando-se sempre de uma panorâmica para direita ou esquerda. Isso gera um fator de entendimento sobre os espaços dentro da casa, seja na relação de uma estrutura de movimentação da protagonista Cleo (Yalitza Aparicio) por todo o ambiente, como a sequência na qual ela apaga todas as luzes da casa, ou a vida presente pelas brincadeiras das crianças. Existe um fator bem intrigante onde a narrativa parece nunca ultrapassar o espaço interno dessa personagem, como logo inicialmente quando se deixa ela fechar a porta no público ou devido a não mostrar uma cena de sexo. Cleo é uma personagem que está sempre sofrendo por tudo, sem nunca saber como reagir.
Uma das críticas mais feitas ao longa é devido ao fato de possuir uma visão quase conciliadora de empregada e patroa. Não há, em momento algum, algo mais explícito em relação a esse ponto. O tratamento aqui é puramente realista, mas Alfonso deixa claro em diversas situações uma separação de classe bem óbvia entre as duas, sendo salientadas de forma mais clara pela cena do ano novo. O ápice dramático da narrativa – a cena da praia – gera uma situação dúbia, pois é isso que se trata essa relação nunca amigável, exemplificado por quando a família assiste TV e a empregada precisa realizar as tarefas. Apesar de Sofia (Marina de Tavira), a mãe, ajudar Cleo, ela nunca se aproxima da vida dela, assim como toda sua família. Isso ainda é enaltecido de maneira catártica quando a avó responde perguntas sobre essa no hospital, sem saber praticamente nada de sua vida.
A escolha pelo preto e branco na fotografia traz um sentido de lembrança, como de fotos antigas, e um certo sentido cru da vida, no sentido que essa não possuísse cor. O fato da obra ser baseada em diversas memórias do próprio diretor e de Libo, sua empregada quando mais novo. Esse retrato bem realístico e cru, traz uma referência bem clara a movimentos como o neorrealismo italiano e o realismo francês, além de lembranças de diretores como Jean Renoir e Federico Fellini. Em relação a esse segundo, há uma citação quase direta na cena do incêndio, com uma realização lúdica, remetendo a filmes como 8 e meio e Noites de Cabíria.
Para além dessa relação de classe, ocorre aqui também um retrato político e crítico ao anos 1970 no México. O país, naquele período, era dominado por um partido único – o PRI -, o que durou de 1946 até 2000. No ápice dos movimentos de protesto pelo país, aconteceu “O Massacre de Corpus Christi”, onde mais de 100 estudantes morreram no conflito. Esse exato dia é transcorrido na obra, em mais um momento de ápice para a protagonista, sempre relacionando uma analogia da película de vida e morte (ainda há uma representação mais clara disso na cena do terremoto). O cineasta ainda dá diversas pistas sobre esse clima presente no ar, como uma possível relação dos Estados Unidos, pela utilização da palavra “gringo” com o personagem Fermín (Jorge Antonio Guerrero), e através do uso da arma por esse mesmo personagem. O avião passando em três instantes – no início, na cena do treinamento e no fim – poderia, do mesmo modo, representar uma constante vigilância do governo ditatorial.
Dentro disso tudo, ainda há um espaço para a discussão sobre o papel renegado da mulher na sociedade. Isso passa por essas duas personagens principais, Cleo e Sofia, devido ao distanciamento, seja diretamente, ou não, que sofrem. A primeira vai ao fato da sua relação com o citado acima Fermín, que a menospreza, chegando até a ser agressivo em seu comportamento. Já a segunda, acontece devido abandono de forma gradual pelo pai da família. Se esse chega, em um primeiro instante, de forma pomposa e buscando nem encostar com seu carro – Cuarón inclusive dá um destaque enorme a esse momento -, ele aparece depois apenas em situações de extremo constrangimento. Aliás, esse carro também representa uma metáfora ao relacionamento dos dois, se destruindo aos poucos.
Roma é uma obra-prima não apenas da própria Netflix (distribuidora do longa), mas do diretor Alfonso Cuarón. É uma história extremamente pessoal e tratada com um carinho único, sendo um projeto totalmente do latino. Muito mais do que um estudo de personagem, é uma obra atemporal sobre um período histórico do México, servindo de documento político sobre classes sociais, machismo e pertencimento. Cleo, como é mostrado ao longo do trabalho, não está longe de ninguém, sendo uma pessoa tentando encontrar seu espaço no mundo, mas sendo totalmente renegada por tudo e todos. Ela inclusive não tem medo de dizer que gosta de “estar morta”. É a vida real de forma bruta. E é isso que Roma é.