Mesmo Delivery e a violência nos pequenos espaços
Sob o ronco de motores de um carro e a frase “Eu teria sido melhor que o próprio Elvis”. É assim que se inicia a HQ Mesmo Delivery. Esse trabalho, desenhado e roteirizado por Rafael Grampá, completa 10 anos agora em 2019 e ganha uma nova e especial versão pela Editora Mino. Nela, encontramos como novo diversos extras com estudos e pensamentos sobre como fazer a história por parte do autor. Porém, acima dessas questões, há algo devidamente intrigante no pensamento completo de Grampá sobre esse trabalho: como a sua liberdade de composição funciona perfeitamente. Talvez – e até bem possivelmente – esse tenha sido o principal motivo de todo o sucesso provocado pela obra há 10 anos.
Toda essa relação está bem explicitada já em sua arte. Com um estilo bem peculiar, ele transforma os diversos elementos estéticos em um caminhão quase como um mundo particular. O ventilador, o desenho no teto, a frente do veículo. Estamos de cara um universo bem próprio que irá se colidir com outro. O autor compara, em certos trechos dos extras, sua busca com algo feito por Quentin Tarantino. Entretanto, é diferente como Rafael traz uma liberdade total para acontecimentos sem ter como foco um formalismo clássico. Sua intenção é criar uma narrativa focada numa total loucura, como uma mistura entre mangás de samurai e um filme de máfia.
A partir disso, seu enredo fica bem cadenciado a priori. Cada elemento é colocado em seu papel para uma espécie de faroeste acontecer. O desafio é colocado na mesa de um homem em um bar, tentando se provar como “o grande”, e o motorista desse caminhão destacado na primeira cena. Mas quem são esses indivíduos? Por que estão ali? Não há preocupações com isso, mas também por quê haveria? A brutalidade da violência nesse microcosmo forma uma sensação dessa banalização social, ao mesmo tempo que elucidam mais a confusão experimental criadas por Rafael.
É interessante como, em uma primeira leitura, não percebemos o universo ruindo em todos os quadros. Antes da violência começar, vamos vendo diversos planos abertos, para termos um melhor panorama da batalha prestes a eclodir. Os desenhos, que não são formais ou padronizados, geram um olhar quase grotesco para esses personagens quando a batalha começa. A pergunta fica em “como eles chegaram até esse ponto?”. Isso para, na página seguinte, vir um susto por outro lado. Esses últimos momentos viram frenéticos ao extremo, trazendo uma ação desenfreada, algo próximo do feito em Mad Max: Estrada da Fúria – dadas as devidas comparações.
A resolução para todo o caso feito em torno dos fundos do caminhão geram ainda mais essa expectativa. Aliás, caso paremos para pensar, não existem soluções mais diretas com esse quesito, eles apenas estão ali. Não chega a ser o caso de um final interpretativo ou quaisquer coisa parecida, apenas ele existe. Existe em um cosmo de uma violência cada vez mais absurda, em conjunto com a claustrofobia de pequenos ambientes. O que é um fundo de um caminhão se não um ambiente claustrofóbico, totalmente fechado? Estaríamos lidando a todo tempo com ele a nossa volta?
É perceptível como Mesmo Delivery pode ser localizado e visto de diversas maneiras/formas. Ao mesmo tempo que estamos lidando com uma HQ de suspense/terror/ação e tudo junto, um trabalho feito nessa brincadeira de gêneros mesmo. Rafael Grampá traz todos os demônios invisíveis para dentro desse mundo, dentro desse pequeno lugar da nossa sociedade. Lugar repleto de uma violência sem fim. Violência essa de um consumo divertido por todos nós, onipresentes em todo o cotidiano.
Não deixe se enganar, não estamos de frente com um quadrinho buscando uma crítica social a todo instante, nem com a intenção de tratar sobre a banalização da violência, apesar dele tratar sobre indiretamente. A busca é perceber esses espaços e microcosmos violentos como algo pop. Pop não apenas como diversão, mas também elucidativo sobre os personagens acima de tudo. Para entender, profundamente, se os demônios estarão sempre no mesmo delivery.