Resenha – A Espera (Keum Suk Grendry-Kim)
Em O Sistema dos Quadrinhos, Thierry Groensteen vai dizer que existem, a partir do pensamento de Henri Van Lier, dois tipos de silêncio dentro das páginas das HQs: o vazio nulo e o vazio-revezamento (2015, p. 120). Enquanto o primeiro retrata o nada, em que não se tem realmente nenhuma novidade ou algo a ser dito entre os quadros, o segundo é uma espécie de mudança contínua, em que sempre o que virá a seguir pode representar algo novo.
Essa é um pouca da experiência que a quadrinista sul-coreana Keum Suk Grendry-Kim vai tentar buscar em A Espera. Mais do que realmente trabalhar um aspecto sobre esses vazios dentro de cada parte da HQ, ela se utiliza desse elemento como forma de também repensar a trajetória das personagens: a narradora – autora dessa história -, e sua mãe. É importante a compreensão de como os vazios e os silêncios farão parte onipresente dentro dessa narrativa, justamente porque corroboram com uma ideia de uma angústia e tristezas quase eternas que ambas as protagonistas parecem sofrer. São os traumas que perpassam gerações.
No entanto, mais do que apenas um drama pessoal, o quadrinho retrata um grande drama coletivo, da civilização coreana (seja ela do Norte ou do Sul). Isso acontece através da história prévia e contemporânea de Gwija, uma idosa que ainda sonha em algum dia, reencontrar o filho Sang-Il, a qual se separou por conta da guerra entre as Coreias nos anos de 1950. Quem narra essa tentativa é a filha dela, a escritora Jina, que busca encontrar a si mesma e um lar dentro da própria vida.
Essas conexões entre as tramas familiares são o andamento principal da forma como Grendy-Kim irá construir A Espera. Essa questão se aparece desde a primeira página, quando vemos Jina dizer que “deixou” sua mãe. Abrir com isso a história traz um relevante aspecto para o qual a autora irá abordar no desenvolvimento desses personagens, que é o apego com o passado. Todas as duas convivem desse laço fortemente afetivo. Porém, enquanto a mulher mais velha está atrás da primeira grande conexão que teve quando mais velha (toda narração sobre a relação machista e distante dela com a família demonstra bem isso, especialmente na sequência do casamento), a mais nova está atrás de saber buscar a própria vida, existência. Ela até chega a contar em certo momento que, apesar de já ter ganho diversos prêmios e felicidades ao longo da carreira, nunca se deu a oportunidade de não morar com a mãe. Desse jeito, ao realizar isso, parecia estar quebrando algo dentro dessa figura materna em que não sabe muito bem como alcançar.
Essa perspectiva é relevante para trazer o aspecto autobiográfico que a narrativa irá encarregar. E esse ponto nunca é escondido por parte de Grendy-Kim, que até chega a dizer em um posfácio sobre como se inspirou na história da própria mãe para retratar essa verdadeira espera do contato. Acima de qualquer coisa, é relevante para a escritora essa compreensão sobre si mesma e como, independente de tudo, está conectada com esse sofrimento de vidas perdidas e separadas por conta da guerra.
Com isso, se pode também trazer pontos importantes ditos inicialmente, como o caso dos vazios, que sempre são preenchidos pela questão sentimental. Não à toa, a artista desenvolve os quadros de maneira a gerar algumas conexões diretas (como quando uma árvore aparece em toda a página no anúncio da morte do irmão de Gwija), assim como indiretas, em uma passagem de tempo comum. No entanto, é interessante como esse desenvolvimento acontece de maneira mais concreta após a separação, no meio da fuga dos conflitos armados, entre as duas partes da família. A artista demarca esse instante como relevante para uma quebra psicológica por parte da mulher. Enquanto, até ali, ela parecia conseguir aguentar tudo que havia passado pela vida, a partir desse instante traz marcas profundas de um sofrimento. Questão essa que reaparece, de maneira tão trágica quanto, após a saída da filha de casa.
Todavia, o trabalho feita em A Espera para este momento é de gerar uma conexão profunda de um fim nos desenhos de Sang-Il para, na página seguinte, trazer a sensação de vazio que está nesse desaparecimento. E isso acontece na sequência das páginas mesmo (que se extrapolam umas nas outras) até mesmo por transformar essa memória em apenas uma silhueta. Como dito anteriormente, esse período demarca uma nova realidade para a protagonista, que começa a ser retratada de forma mais concorda, além de um destaque onipresente para a forma de caminhar e de se relacionar com outras pessoas. Para além de dentro da cabeça, esses efeitos físicos perpassam tanto o corpo a ponto de ela tropeçar e torcer o pé.
Narrativamente, esse é um momento também importante para a HQ, já que, é claro, está muito mais interessada na perspectiva dramática por parte de cada uma dessas figuras do que realmente dentro do lado mais histórico da guerra. Em pequenas interjeições, Grendry-Kim até traz elementos importantes para a compreensão do conflito, como o início da batalha e toda a questão prévia perante o Japão e os comunistas. Contudo, fica claro como a preocupação é bem menor nesse aspecto historiográfico pelo simples motivo de nunca, dentro das páginas, sabermos os fins do confronto ou até mesmo lados vencedores. É quase como se A Espera estivesse já trazendo uma derrota eminente por parte das perdas e desse trauma que nunca foi esquecido.
Esse quesito de uma verdade dos acontecimentos é até trabalhado de forma mais abrangente ao longo das páginas, já que, em uma conversa de mãe e filha, Jina chega a interromper a progenitora em certos instantes para trazer o que realmente aconteceu. A onipresença desse trauma é até mesmo incapaz de buscar qualquer elucidação para uma guerra que causou apenas miséria.
Assim, a trama passa para o passado e chega no presente para retratar, mais uma vez, a questão psicológica por parte dessa tristeza onipresente em cada uma das páginas. É possível ver Gwija conversando com uma amiga que havia encontrado nos momentos iniciais e que disse estar inscrita em um programa da Cruz Vermelha para reencontro de parentes das Coreias do Norte e do Sul. Essa amiga consegue rever a irmã e o desenvolvimento dos quadros traz muito menos uma importância em si do trajeto e do que foi falado, dando destaque para uma questão mais física, corporal (que, como dito antes, agora faz parte constante após a ‘perda’ de Sang-Il). É até curioso como as mãos são retratadas de forma a elucidar e trabalhar todo esse sofrimento em alguma parte única do corpo. E também de como isso será catártico para a despedida das duas, que pode ser feita apenas pela distância e não verdadeiramente como uma presença de uma com a outra.
Esses momentos se tornam importantes para uma lembrança constante por parte da mãe e de seu segundo marido (o pai de Jina), que, apesar dos dois construírem uma relação juntos, nunca deixam que o futuro se torne relevante. O passado faz parte intrínseca do relacionamento deles, novamente de um jeito físico e psicológico, que afeta a forma como os dois conseguem construir o que virá pela frente. De certa forma, também vemos isso em um tracejo dos pensamentos da escritora, que parece ter ficado, de certa forma, com marcas dessa relação que nunca foi verdadeiramente completa. Esse ponto não é colocado de forma totalmente verbalizada, mas sim através de representações e do jeito que a própria protagonista da história observa a mãe.
Nesse sentido, é possível trazer o escrito de Postema, ao dizer que “seria mais acurado pensar os quadrinhos mais como uma forma que é impulsionada principalmente pelo visual, em que o verbal com frequência acrescenta interesse ou profundidade”. (2018, p. 116). Dentro do trabalho de A Espera o visual é o elemento mais relevante para esse tracejo psicológico que vai aparecer em cada uma das páginas. O aspecto da contação, por assim dizer, é um elemento de complemento para como iremos entender a relação de mãe e filha por cada quadro.
Por isso o desenvolvimento próximo ao fim acaba sendo tão importante. Até que ponto existe uma culpa em ambas as personalidades ali presentes? Será que elas, um dia, poderão conseguir conviver com o peso desse passado que as transformou? E o futuro também, como pode ser construído com toda essa bagagem nas costas?
Ao trazer diversos questionamentos próximos das páginas finais, poderíamos achar que a obra vai em busca de realmente de tentar elucidar algo por parte de toda essa condição dramática criada. No entanto, ao, no fim, trazer a morte como elemento principal, mostra que o trauma apenas gera feridas que podem aumentar e nunca verdadeiramente cicatrizar. Pode-se analisar, sendo assim, o trabalho feito por Keum Suk Grendry-Kim em uma condição inteiramente pessimista de mundo. É como se, apesar de todas as coisas, essa tristeza e sofrimento criados em um passado de um longo período atrás (que remonta até mesmo dos pais de Gwija) podem apenas se transformar em algo que está marcado em todos os DNAs do futuro dessa família.