Os espelhos da alma de Kacey Musgraves
Um diário, quando escrito por alguém que quer partilhar sua intimidade, seja com o mundo ou com si próprio, passa a ser análogo a um espelho, mas, ao invés de refletir aparência, reflete as perturbações e divagações da mente e a pureza e inquietação da alma. Ao ter sua imagem refletida em páginas, entretanto, nem sempre as palavras saem como idealizadas. Às vezes, sentimentos tornam-se conflituosos e, para o bem da escrita, são criados mecanismos para expressar ações ou pensamentos, como jogos de palavras que evidenciam em uma mesma linha figuras opostas, famosas antíteses.
Em seu quarto álbum de estúdio, Golden Hour (MCA Records, 2018), a cantora e compositora de pop-country Kacey Musgraves faz exatamente o descrito acima. Muitos álbuns na história recente da música popular possuem essa característica de diário musicado, e, como exemplo, podemos citar o aclamado Either/Or, de Elliott Smith, ou os recentes Morning Phase, do Beck e Carrie & Lowell, do Sufjan Stevens. São álbuns que possuem múltiplas temáticas, partindo de uma ideia de introspecção que os atingia à época do processo criativo de cada disco. Ao contrário do que se convencionou na cultura pop, que parece quase sempre conectada ao sentimento romântico-amoroso, esses discos, tanto o de Musgraves quanto os dos cantores citados, se destacam por serem retas fora da curva, justamente por exporem situações inerentemente humanas, e consequentemente, imperfeitas.
Músicas como a canção de abertura de Golden Hour, a crescente Slow Burn, com seus arranjos acústicos que remetem o ouvinte à música Casimir Pulaski Day, de Sufjan Stevens, iniciam com antíteses, que refletem o foco principal do trabalho mais recente da compositora: o contraste entre a leveza e a reflexão, sintetizadas tanto no discurso estético quanto na musicalidade do projeto. “Nascida com pressa, sempre atrasada, não me adianto desde 1988”, diz a cantora no primeiro verso da faixa, já introduzindo ao ouvinte o tom de intimismo da obra, que nos leva a segredos e fatos da vida de Kacey, como o momento de seu nascimento. Kacey nasceu seis semanas antes do previsto, e conheceu o mundo prematuramente. Talvez por isso tenha tanta noção de seu papel nele.
Recentemente casada, a cantora poderia ter feito desse disco uma celebração do amor e da cumplicidade, mas não é exatamente o que ocorre na prática. A segunda faixa, Lonely Weekend, novamente trabalha com o contraste, dessa vez entre a solidão, que pode existir mesmo dentro de um compromisso matrimonial, e a aceitação da mesma, a conscientização de que essa realidade faz parte da vida, e resta aproveitar os bons momentos.
Há, também, faixas essencialmente felizes, como a criativa Oh, What a World, que, através de sintetizadores e vozes robóticas que remetem ao duo Daft Punk, ao mesmo tempo que mantém a essência acústica da cantora, celebra a vida e suas particularidades. “Essas são coisas reais”, diz Kacey, após declarar sua paixão pela simplicidade da vida presente em elementos da natureza. Ao final da canção, Kacey parece agradecer ao tempo presente, ao momento imediato, ao “clique” que a mente faz quando nos damos conta de que possuímos um bom parceiro e uma vida feliz ao lado dessa pessoa. O contraste aqui, não é da letra, e sim, talvez, dos samples futuristas presentes no início e no fim da faixa, e sua mensagem de valorização ao imediatismo.
Navegando por tantas temáticas diferentes, Kacey ainda trata, na canção mais intimista e desoladora de todo o trabalho, Mother, sobre a constatação da presença importante de sua mãe em sua vida, durante uma viagem de LSD que levou Kacey a pensar nela, especialmente após receber uma mensagem da mãe ainda durante o uso da droga.
Ao longo do restante da duração do disco, os contrastes e as antíteses voltam a aparecer em massa, como na faixa Happy & Sad, que, ao contrário de canções como Oh, What a World, colocam Kacey em dúvida quanto ao seu merecimento de momentos tão bons. Ela sabe que, assim como não dá para se ter momentos ruins sem ter momentos bons, também não dá para viver só de felicidade. “Você me faz sorrir com lágrimas em meus olhos”, relata Kacey, mostrando ao ouvinte que, por trás de sua vida intensamente vivida e plenamente realizada, a cantora possui uma espécie de armadura a certas situações, que a impede de ser plenamente feliz e grata a tudo.
Trabalho de grande originalidade e inventividade, Golden Hour soa como um refresco de novos conceitos para o cenário pop-country, tanto por sua temática múltipla quanto por sua pluralidade sonora. Kacey Musgraves é um nome a ser cada vez mais explorado na mídia. Fique de olho e ouvidos atentos a ela, pois é provável que essa resenha seja apenas o ponto de partida para você conhece-la cada vez mais e apreciar sua arte inventiva.