Velvet Buzzsaw e a arte como autodestrutiva

Em um dos momentos primordiais do clássico Prelúdio para Matar (1975), de Dario Argento, as obras de arte enganam o ambiente para a descoberta de um assassinato. O personagem principal, vislumbrado pelo meio em que se encontra, não consegue perceber a face do matador. Argento ainda toca na arte como uma relação quase intrínseca ao horror, como a dança em Suspiria (1977), a escrita em Tenebre (1982) e a ópera em Terror na Ópera (1987). O diretor Dan Gilroy parece beber dessa fonte de inspiração para falar sobre o papel desse sentido artístico na contemporaneidade, muito relacionado ao consumismo e com uma confusa valorização, em Velvet Buzzsaw.

No antro dessa história se encontra o personagem Morf Vandewalt (Jake Gyllenhaal), um crítico de artes plásticas que parece sempre estar com pé atrás na vida pessoal e ao analisar seus objetos de trabalho. Através de sua visão ao adentrar em uma exposição, observa-se um mundo de luxúria, na qual algo menos complexo de ser feito parece ser idealizado ao máximo. Nesse mundo habitam seres sedentos muito mais pelo consumo do que propriamente ao debate, nas quais Rhodora Haze (Rene Russo), dona de uma galeria, e Gretchen (Toni Collette), uma mulher que tenta trabalhar sendo consultora de ricos, parecem ser chamarizes. As duas idealizam conceitos exacerbados nessa primeira parte do longa, muito mais preocupado em entender o funcionamento desse universo.

Gilroy, a partir daí, concebe diversas características para os diversos personagens coadjuvantes, afim de sempre brincar com as personalidades presentes. A assistente traída Josephine (Zawe Ashton) é atraída pela cobiça e dinheiro; o artista Piers (John Malkovich) parece querer sempre olhar além, por um olhar quase mesquinho, enquanto seu contraposto, Damrish (Daveed Diggs), quer crescer, sem perder suas raízes por ter participado de um coletivo – inclusive, há uma cena aonde os dois contracenam e é possível perceber os pontos de vista, mesmo sem falas, ao observar uma obra. Todas essas micro relações geram a funcionalidade desse mundo prestes a ruir, quando a obra completa de um artista mais velho é descoberta.

A direção estabelece um ponto de virada não tão claro na transformação de uma comédia crítica para o terror. Apesar de se manter o tempo todo em uma limiar de dualidade, o filme possui diversos momentos pouco assumidos. Isso transforma toda essa sinergia inicial em diversos instantes únicos, se encaixando nessa relação mais clara com o giallo. As mortes, nesse último, são todas quase sempre uma adoração, um ritual a parte, já aqui elas parecem muito mais fazer parte de uma continuidade comum, como se os próprios personagens mortos morreriam pela arte em algum ponto de suas vidas. É quase como se a obra mostrasse o sacrifício de uma venda da alma para uma indústria que usa e abusa do lucro, transformando esses pequenos elementos em simples máquinas de matar (a morte pela obra Esfera talvez seja o exemplo mais claro disso). O legado daquele artista morto poderia ser uma forma de enxergar sob outra perspectiva o meio, algo que Morf, pelo seu papel de crítico, ainda tenta, mas o consumismo resultante disso gera a morte como consequência única.

Mesmo sabendo trabalhar esses elementos narrativos e do enredo de maneira bem única, o longa possui um certo problema em como trabalhar essas perspectivas únicas para culminar em uma finalidade. Personagens como Coco (Natalia Dyer) e Jon Dondon (Tom Sturridge) sempre parecem um tanto quanto perdidos, muitas vezes até reforçando diversos pontos já mais bem elaborados anteriormente. Essa certa falta de peso ao medir a comédia e o horror acaba resultando um instabilidade temática em alguns pontos, como na cena de morte envolvendo a exibição de imagens. O diretor parece não saber até que ponto soar absurdo ou mais realista.

Velvet Buzzsaw é um filme bem diferente e com traços mais espinhosos dentro da filmografia de Dan Gilroy. Se em O Abutre ele busca um suspense mais direto para falar sobre mídia e em Roman J. Israel seu objetivo parece mais entender uma certa inocência na corrupção do cotidiano, aqui seu trabalho está focado em entender como a arte se relaciona aos tempos modernos. Sua crítica, bastante ácida, parece querer tecer paralelos até com o próprio cinema atual, ao satirizar conceitos de uma obra ser melhor do que outra. Até que ponto realmente estamos vendo a arte? Até que ponto estamos só deixando ela passar? Não é a toa que em diversos pontos, pinturas estão em volta dos protagonistas, todavia esses pouco parecem se importar. De preocupações com o atual estado do meio, Gilroy parece estar cheio.

Comentários

Cláudio Gabriel

É apaixonado por cinema, séries, música, quadrinhos e qualquer elemento da cultura pop que o faça feliz. Seu maior sonho é ver o Senta Aí sendo reconhecido... e acha que isso está mais próximo do que se espera.

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