A sociedade contemporânea está em todos Nós?
Esse texto contém spoilers de Nós
Talvez um dos filmes mais empolgantes de serem discutidos nos últimos tempos seja Nós, recém-lançamento do diretor Jordan Peele (realizador de Corra!). Temos aqui uma história de horror direta e clássica, perpassando por monstros pessoais e coletivos, além do medo a nossa volta. Peele, assim como em sua obra anterior, busca uma discussão de abrangência social e, obviamente, política – até porque todo ato é político. No entanto, o racismo aqui parece ser bem mais uma relação propriamente palpável desse universo, ainda que não explorada. Aqui se busca analisar e discutir todas as relações existentes em nossa sociedade contemporânea, marcada por fatores e lugares totalmente extenuantes.
Antes de tudo, é interessante perceber como a história se desenvolve em uma ideia de coincidência e dualidade. Na primeira em um lado mais pautado na disformação do comum, do cotidiano. Se somos acostumados a algumas questões rotineiras, algo que fuja disso se torna, assim, uma diferenciação, uma coincidência. Podemos pensar assim em até como o próprio terror é uma formação de coincidência, ao ponto de explorar sempre algo fora do comum acontecendo, sendo totalmente inesperado. O medo também possui uma relação bem forte com nossa cabeça e até tormentos sociabilizantes, ou não é verdade que o receio constante em ser assaltado na rua possui uma correlação quase intrínseca ao racismo?
Já na segunda é em relação ao dual pertencente na nossa própria existência cotidiana. Somos sempre dois, assim como as coisas ao nosso redor são multiplicadas. Todavia, a busca da discussão desse longa pode se pautar em torno de uma análise mais sócio-política, por isso, vamos nos ater a ideia do eu. Esse eu, para a psicologia, pode ser um sinônimo claro de uma formação da nossa personalidade, de nossos valores, de quem nos entendemos como indivíduos. O conceito do ego, estudado por Sigmund Freud, gera uma moralidade interna, uma relação muito proposta em entender o funcionamento do universo a nossa volta e de qual maneira podemos nos encaixar nele. Entretanto, nos anos atuais, somos postos em uma constante pressão por deveres, por obrigações perante aos outros e geramos o meio social como nosso ponto de fuga. Buscamos formas de mostrar que na verdade somos outros, gerando novas imagens, novos “eus”, constituídos de morais e inteligências bastantes personalistas.
Bom, mas o que isso tudo pode ter a ver com Nós? Pode-se interpretar a alegoria da produção como uma forma desse nosso ser interior se rebelar perante a uma outra existência. Enquanto nossa persona de fora precisa ter uma família perfeita com dois filhos, uma casa de campo, se mostrar todo o tempo feliz (mesmo com os traumas sempre voltando a nossa cabeça), nossa outra forma vive em uma total isolamento social, sempre sem poder mascarar realmente a vida. Essas questões podem até ser postas em práticas nas discussões sobre masculinidade tóxica e os recentes atentados de Suzano e da Nova Zelândia – algo discutido de maneira bem mais profunda no podcast Mamilos. A projeção social se torna extremamente relevante, mas as vezes se torna impossível, sob uma ótica exterior, ver as cicatrizes nos mais diversos seres. A personagem de Elisabeth Moss e sua plástica traduzem bem isso.
Afim de representar todas essas questões, a direção trabalha os pontos de conexões duais de um jeito sempre bastante explícito, seja com tesouras, o número 11, as figuras dos humanos e dos acorrentados. Peele deixa claro como esses questionamentos são importantes a natureza de sua obra, proposta em um universo onde a duplicidade personalista é fundamental. Onde entendermos de onde nossa “fúria inferior” vem, realizando atos sempre violentos, é fundamental. Todavia, ele também trabalha no modo de naturalização, de banalização dessa violência pelo meio social. Cometemos crimes e toda a relação midiática acaba por nos tornar violentos, seres irracionais na maior parte do tempo, mesmo que até não queiramos admitir isso.
A corrente formada por esses acorrentados também pode possuir uma significação dessa bolha social, na qual se acaba sendo inserido. Os mesmos assuntos, a mesma temática e as mesmas situações acabam se tornando presentes na vida. Vivemos em bolhas. E, no fim das contas, a fala do clone de Lupita Nyong’o ao ser questionada sobre quem eles são – “Nós somos americanos” -, naturaliza ainda mais essa relação de que nosso ser digital, se é possível dizer assim, também é ‘nós’. É uma questão bem clara sobre a essência e o que nos torna uma pessoa única. Ou será que somos apenas zumbis, como representado na camisa de ‘Thriller’, do cantor Michael Jackson? Para Jordan Peele, quem sabe, Nós seremos apenas liderados por um hino, como diz a música título, clamando por apenas nos reproduzirmos da mesma forma que coelhos.