Afinal, quem é essa mulher Zuzu Angel? 100 anos de perguntas
Ainda sofrendo do rescaldo das comemorações vis e criminosas organizadas pelo Governo Federal, por congressistas, por militares da ativa e da reserva e por civis em prol do golpe civil-militar de 1964, que torturou e matou brasileiros e brasileiras, pus no rádio um CD de Chico Buarque. Um CD, cujo título é “o político”, que faz parte de uma coleção antiga assinada pelo crítico Tárik de Souza comemorando os 50 anos do cantor. O leitor saberá que não foi por acaso: Chico foi um dos artistas mais perseguidos e censurados pela Ditadura Militar, iniciada pelo golpe que se comemorava. Gritar “apesar de você/amanhã há de ser/ outro dia” foi, ao mesmo tempo, catártico, me fez parar de choramingar e me fez vislumbrar um horizonte possível para além das comemorações criminosas e patéticas, pois é a prova de que nossa revolta tem canalizações restritas, por ter 50 anos que ainda cantamos “apesar de vocês” e fica a dúvida: até quando precisaremos cantar esse refrão? Esta música, muito simbólica do período, foi “biografada” por mim neste pequeno artigo.
Minha casa é razoavelmente perto da Vila Militar, na zona oeste do Rio de Janeiro, e ao lado da Base Aérea dos Afonsos de onde se ouvia bastante barulho neste dia 31 de março. Não procuro fazer ilações levianas, mas é surpreendente ouvir qualquer zumbido vindo daquelas corporações que por 21 anos silenciaram milhares de brasileiros e brasileiras.
O disco seguia rodando passando pelas músicas “políticas” de Chico. Não entrarei na discussão sobre a segmentação da obra de um artista tão complexo quanto ele, deixo essa questão para um próximo texto que jamais escreverei. Eis que chego na faixa 12, a antepenúltima do disco e choro. Era a música “Angélica” em parceria com Miltinho do MPB-4. E é sobre ela que eu tentarei falar. Tentarei porque é doloroso e porque “ela” são muitas.
Suponho que, os fãs de Chico Buarque ou ouvintes mais interessados em MPB conheçam a história por trás da música. Peço licença para rascunhá-la aqui e, digo desde já, que a descrição da morte de Stuart Angel é terrível, mas necessária para dar a dimensão da crueldade que é a prática da tortura.
Zuzu Angel, uma estilista de sucesso e renome internacional, era mãe de Stuart Angel, estudante de economia da UFRJ, membro da organização armada MR-8 e que fora levado preso pelas forças da repressão – mais precisamente o da Aeronáutica (CISA). Stuart, então, foi preso, torturado e morto em 1971. Uma das versões mais aceitas sobre a prisão e morte de Stuart foi dada por um preso político, Alex Polari, que, de dentro de sua cela, viu uma das sessões de tortura a qual era submetido Stuart. Essa sessão consistia em amarrá-lo a um carro e ser arrastado pelo pátio do quartel. A partir dessa reconstituição Polari indica que, entre risos, espancamentos e perguntas, Stuart era forçado a colocar sua boca no cano de descarga do carro e, com isso, inalava gases tóxicos. Stuart foi desamarrado e, já com o corpo esfolado, clamou por água. Em vão. Stuart morreu por conta da tortura e ainda consta como um desaparecido político, pois seu corpo nunca foi achado. Mas esse não é o fim da história.
Esse texto é sobre uma mãe que não descansou, um jovem torturado e dois compositores atentos e sensíveis politicamente. Esse texto é sobre um pouquinho de nós. É inevitável, depois de contada a sessão de tortura que Stuart fora submetido, não assumir uma nova percepção sobre os versos finais de “Cálice” (1973) que dizem “quero cheirar fumaça de óleo diesel/me embriagar até que alguém me esqueça”. Esses versos poderiam ser perfeitamente o preâmbulo de “Angélica”, que é sobre justamente aquela que nunca esqueceu: Zuzu Angel. Esta mulher tem o centenário celebrado neste fatídico 2021. E a morte cruel de seu filho completa 50 anos. Isso é a prova da potência da canção brasileira que, como insiste José Miguel Wisnik, num país de letramento médio como o nosso, a canção no século XX foi fundamental para nos contar sobre nós mesmos. A canção, portanto, tornou-se a educação sentimental do brasileiro, que, ao cantarolar “Angélica”, está cantarolando a história de um país que impede até hoje suas mães de embalar seus filhos.
Angel não esqueceu e usou de seu renome internacional para denunciar a morte e o desaparecimento de seu filho. Sua história é um manancial de possibilidades artísticas. Uma cinebiografia foi realizada em 2006 por Sérgio Rezende com Patrícia Pillar no papel de Zuzu, e uma biografia está sendo escrita por Virginia Siqueira Starling e sairá pela editora Todavia nos próximos anos. Mas a “vida real”, a vida de Zuleika de Souza Neto não tem nada de livresco ou ficcional. Após o desaparecimento de seu filho, Zuzu começou uma peregrinação em busca de notícias e, depois de confirmada a morte, foi em busca do corpo de seu filho Stuart. Sua circulação privilegiada, a dupla nacionalidade de seu filho e a guinada estética de confronto à ditadura deram dimensão internacional ao caso. Zuzu organizou desfiles-protestos nos quais as roupas estampavam anjos feridos e amordaçados (uma alusão direta ao sobrenome estrangeiro “angel”) nos EUA, foi matéria em diversos jornais estrangeiros, entregou dossiês nas mãos de diversas lideranças internacionais, inclusive a Henry Kissinger. Ele que era secretário de estado americano na época e que visitara o Brasil em 1976, foi ao apartamento de Ernesto Geisel e sua história chegou ao Congresso Americano por meio do discurso de um Senador que tomou conhecimento do caso. Como estilista, estampava, em suas criações, grades de prisão, canhões, tanques, insígnias militares, manchas vermelhas e outros bordados de denúncia à prisão e à tortura cometidas pela Ditadura Militar.
A música original, de 1977, lançada no disco Almanaque (1981), dura 3 minutos e oito segundos e tem como leitmotiv o primeiro verso “Quem é essa mulher”. Esse verso se desdobra em outros três que compõem uma estrofe que, ao fim, serão quatro de quatro versos cada. O segundo verso denota a repetição do canto sofrido dessa referida mulher (estribilho, lamento, arranjo, sino) – elementos presentes numa espécie de cortejo fúnebre interditado. O terceiro verso se inicia com um “Só” que é a prova de que essa mulher queria algo básico, mas fundamental para nossa psique, o luto (embalar o filho, lembrar o tormento, agasalhar meu anjo, cantar por meu menino). E, no quarto e último verso, lançando mão das conotações e metáforas quase literais, Chico Buarque elabora sobre: a possível última “morada” do corpo insepulto, o fundo do mar – que é uma das possibilidades de para onde foi o corpo de Stuart, jogado de um helicóptero na região da Restinga da Marambaia -, sobre a tortura que Stuart sofreu e cujo lamento o fez suspirar (a já referida forma de tortura sofrida por ele), sobre a impossibilidade de Zuzu embalar o corpo, no sentido de ninar, mas, suponho, que embalar também no sentido de o sepultar, e, por fim, a impossibilidade dele, Stuart, cantar já que fora assassinado. Tudo isso com uma melodia complexa, circular, repetitiva que lembra as canções de ninar e ao mesmo tempo dramática com o canto mais carregado de Chico. Sem falar no nome da faixa que faz alusão direta ao sobrenome de Zuzu e de Stuart.
Essa música muito se liga a essa amizade entre Chico e Zuzu, que passava na casa dele para lhe dar notícias sobre o paradeiro de seu filho. Uma dessas vezes deixou para ele um bilhete que, em outras palavras, dizia “se algo acontecer comigo, vocês já sabem quem foi”. Anos depois, descobriu-se que Buarque e Paulo Pontes fizeram cópias desses bilhetes e mandaram, anonimamente, para parlamentares, imprensa e outros que poderiam ajudar a encontrar Stuart. A entrega do famoso bilhete de Zuzu demonstra que ela estava atenta aos estranhos movimentos em torno de si, de sua casa, à espionagem, aos carros suspeitos, etc. Na madrugada do dia 14 de abril de 1976, na saída do Túnel Dois Irmãos (que hoje leva seu nome, Zuzu Angel), guiando seu Karmann Ghia, bateu numa mureta, capotou e caiu na estrada abaixo, vitimando-a fatalmente. A primeira versão dizia que se tratava de um acidente como qualquer outro, mas, desde então, essa versão é contestada. E uma série de documentos, relatos, a Comissão de Desaparecidos Políticos, a Comissão Nacional da Verdade, análise de fotos do local, o Wikileaks e tantas outras coisas dizem que Zuzu Angel não podia mais cantar para seu filho porque foi assassinada pela Ditadura Militar. A mesma que, então, é comemorada com salva de tiros e notas oficiais.
A pergunta do título do artigo não tem resposta. Lembro que na Argentina, as mães de desaparecidos políticos se organizaram e criaram, desde o fim da década de 70, um movimento que pede justiça aos mortos e desaparecidos políticos da ditadura argentina, as Mães da Praça de Maio. Na mesma Argentina, as Avós da Praça de Maio se organizaram para encontrar bebês sequestrados que tiveram suas mães mortas pela ditadura argentina. Não aqui.
Aqui é um país que não julgou seus torturadores, que não alterou a estrutura arcaica e autoritária das polícias militares, que não reviu sua lei da anistia, que não, que não e que não. E, apesar do centenário de Zuzu Angel e do meio século da execução de seu filho, a negativa continuou. Só em 2019, Hildergard Angel (filha de Zuzu e irmã de Stuart) conseguiu o atestado de óbito de ambos. Vivemos no país da negativa ou da negação. Mas não nos esqueçamos, tudo que é recalcado volta. E voltou com faixa presidencial e fardas na Casa Civil. Graças a esse movimento deliberado de não responsabilização dos agentes do Estado que cometeram crimes, este país é entupido de mães que não podem embalar e nem cantar mais para seus filhos que foram mortos por “bala perdida”, ou foram executados a sangue frio por policiais militares, ou simplesmente desapareceram. Todas essas mães que não tem sobrenome gringo e nem são amigas de Chico Buarque, mas compartilham com Zuzu Angel a dor de nunca poder embalar seu filho para seu corpo descansar.
Agradeço a Tamires Marcello pela revisão ortográfica e moral deste texto. Todas as opiniões e análises do texto são, como de costume, obra e culpa do autor.