Algumas notas sobre Noturno, disco de inéditas de Maria Bethânia
1. O título e a simplicidade da capa do álbum (sim, eu ainda chamo de álbum) foram bastante criticados como “os piores da carreira de Bethânia”. Permitam-me discordar. Sem dúvidas, não figura no Olimpo das capas e títulos como Álibi (1976), Rosa dos Ventos – ao vivo (1971), Mel (1979), entre outros. Conhecendo a personalidade de Bethânia, ela nada tem de notívaga. Ela gosta do dia, do sol. Personalidade, essa, assumida em diversas entrevistas. Esse “noturno” diz respeito ao “conceito” do disco. Maria Bethânia não grava uma lista de músicas – ela cria um conceito, que faz com que todas as músicas se alinhem em nossa cabeça como um leitmotiv não-óbvio e cada vez mais subjetivo.
2. Até onde vão minhas luzes (e sem ler sua entrevista ou críticas, apenas ouvindo o disco), Noturno significa tanto o espírito das boates da zona sul onde se apresentava, sempre de casa cheia. Penso nisso, pois Bethânia começou esse projeto em um lugar que glosa as boates cariocas dos anos 60-70. As músicas de dor de cotovelo, de “o bar é o refúgio dos mal amados”, etc. me proporcionam esse argumento.
3. Noturno, porém, está o Brasil. Imerso numa treva de obscurantismo e neofascismo corrente. A letra de Adriana Calcanhotto, sobre a morte do menino Miguel, preto, de 5 anos, que caiu do nono andar de um prédio de luxo de Recife ganha, no canto falado e nos ecos de Bethânia, a gravidade que o episódio merece. Eis mais um prisma do “Noturno no Brasil” (como Bolaño, no Chile).
4. Bethânia é uma mulher de 75 anos com um pé no recôncavo baiano e na sociabilidade da “utopia urbana” da zona sul carioca onde morro-asfalto se retroalimentam culturalmente – coloco o Zicartola como epítome dessa utopia. Na música “Cria da Comunidade”, cantada pela intérprete e pelo sempre excelente Xande de Pilares, que assina a autoria com o ilustre-desconhecido Serginho Meriti. A música é sobre uma vencedora que se aproxima de um compositor da Zona Sul por meio do metrô (Coelho Neto-Zona Sul). Aqui está uma atualização dessa utopia? Não sei, mas minha hipótese é que ela está no disco pela sua positividade, apesar dos pesares, que contrasta imediatamente com a tragédia em “2 de Julho”. Quem não entende que o Brasil é onde “o cano da pistola que as crianças mordem” é o mesmo “que reflete todas as cores da paisagem que é muito mais bonita e muito mais intensa do que no cartão postal” pode cair na crítica de “giro no vácuo” – onde se produz um conteúdo sem lastro, seja social ou ideológico, nenhum.
5. Poderia escrever muito mais. A voz de Bethânia. Drama. Compositores novos. A religiosidade. A gravidade. O contraste do título Noturno com uma capa toda branca. A pandemia. O sexo. Contrastes. O ar de Lupicínio Rodrigues etc. Mas ouçam Maria Bethânia – ninguém passa incólume por uma força da natureza.