Crítica – A Cidade dos Piratas

A primeira sequência de A Cidade dos Piratas mostra um pouco para que veio. Toda a encenação clássica e a ideia da descoberta do Brasil pelos portugueses é cortada quando começa um conflito ante os indígenas. Esses, diferente da realidade, possuem armas de fogo e podem contra-atacar os portugueses, sem agora o real poderio bélico. No entanto, após uma intensa confusão, o principal líder dos colonizadores prende um nativo e aponta uma arma para sua cabeça. A cena corta para uma representação de um momento desse mesmo instante na atualidade. Em vez de apontar a arma, o europeu aponta uma cruz. O outro, em vez de estar amarrado, reza.

Essa crítica social faz parte quase onipresente do trabalho de Laerte Coutinho. No entanto, para os fãs é possível perceber bem isso, seu trabalho se alterou bastante e alguns personagens sumiram desde que a mesma se assumiu como transexual. E quais seriam os motivos disso? A sua visão de mundo se alterou? Ela se percebeu como uma outra pessoa ao realizar aqueles trabalhos antes? É tudo um pouco disso e é nessa questão que a obra tenta explorar. A busca é repassar toda a carreira da quadrinista, tentando mesclar o olhar desses personagens, diversas pequenas tiras e um relato biográfica de sua vida.

É intrigante perceber como o diretor Otto Guerra busca uma realização bastante anárquica. Olhando como um trabalho fílmico dramático, podemos ver algo quase vazio. Contudo, percebendo todo esse passado da artista, olhamos essa estética como uma homenagem. Como Laerte conseguiria conceber tantas ideias a partir do nada? Através dessa loucura colocada em tela. A loucura é tão grande a ponto do próprio Guerra ser um personagem da trama, como ele mesmo, no caso. O diretor na qual não sabe como idealizar um longa tratando sobre todos esses elementos complexos e confusos, além de tentar dar voz ao maior nome dessa história.

Além dele, Laerte, um político conservador, um homem que esconde para a mulher ser travesti, um pirata e um touro completam a narrativa. Todos possuem seus arcos – se é possível chamar de um arco – dentro desse desenvolvimento insano. O objetivo com eles é sempre reforçar algo trabalho pela autora ao longo de sua carreira: as críticas sociais. Eles são, para os que não sabem, personagens também das HQs dela. Com isso, fazem parte desse imaginário representativo e criado ao longo de sua vida na arte. Fazem parte, ao mesmo tempo, de uma outra vida quase, quando a mesma ainda era tratada como um homem. Fazem parte, de toda forma, de uma iconografia bem única da produção quadrinística nacional.

Desse jeito, é impossível não perceber esse DNA da película como uma intensa homenagem. Apenas do próprio jeito na qual Laerte poderia receber. Sem muito um sentido claro, porém com muitos sentidos por detrás. Mesmo, em certos instantes, cansando nessa repetição (especialmente com as repetições de ideias sobre órgãos genitais e decapitações), a coesão gerada transforma tudo em um grande trabalho. A conexão que o público possui com essas figuras causam um envolvimento ainda maior. Todo o conceito posto nessa encenação é mais por um puro experimentalismo do que uma busca narrativa.

Todos esses elementos transformam A Cidade dos Piratas em uma realização única e uma homenagem perfeita para toda a carreira de Laerte. Aliás, é interessante perceber como os questionamentos sobre sexualidade e gênero fazem uma parte quase onipresente dessa narrativa. A discussão, entretanto, não pretende ter um fim, mas sim buscar algo novo, quase um novo começo. Por isso, brinca com os diversos conceitos e pensamentos. A arte também faz parte dessa brincadeira, mas possuindo demais dimensões, como no caso da aparição de Fernando Pessoa. Ao fim, Otto Guerra tenta brincar com tudo. Porém, acima desses elementos, traz um olhar particular para a história da maior quadrinista da história do Brasil.

Comentários

Cláudio Gabriel

É apaixonado por cinema, séries, música, quadrinhos e qualquer elemento da cultura pop que o faça feliz. Seu maior sonho é ver o Senta Aí sendo reconhecido... e acha que isso está mais próximo do que se espera.

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