Crítica – Assexybilidade
Corpos PCD no cinema costumam existir entre extremos, sinalizando que certo personagem é puro, “inocente” e afins. Ou, no pior dos casos, como forma de marcar que estamos lidando com algo grotesco, fora da normalidade. Há também a velha história da superação, mostrando as dificuldades da pessoa com deficiência para ao final terminar com a velha lição “apesar das dificuldades, ela perseverou”, e afins. Isso falando das deficiências visíveis, pois as invisíveis possuem a sua própria dose de clichês, como o autista superinteligente que tudo sabe e resolve, e o uso da esquizofrenia como um atalho fácil para vilania e afins.
Assim, PCDs são percebidas de modo simplificado pelos demais, tratados a pão de ló ou temidos, a depender da condição encarada. Pessoas complexas, com desejos e vontades únicos? Difícil, e é nesse ponto que Assexybilidade toca, e justamente por uma perspectiva ainda mais tabu, a da sexualidade.
O documentário, dirigido por Daniel Gonçalves, também PCD, coleciona histórias de pessoas com vários tipos de deficiência, no que tangem suas experiência, ou inexperiência, sexual, e como suas condições afetaram suas trajetórias. Assumo que, antes de entrar na sessão, tive certo receio de me deparar com um material pautado pela curiosidade pura e simples, de ver as relações dos personagens como algo a ser investigado e esclarecido para o “público geral”.
Mas nada mais distante da realidade. No debate pós-sessão, Daniel citou Eduardo Coutinho como inspiração, e é perceptível a influência. Coutinho entendia seus personagens como pessoas já donas de suas vozes, e não se enxergava na posição de “dar voz a elas”, o mesmo acontece em Assexybilidade, onde os entrevistados tem a sua liberdade para falar a vontade, brincando com suas próprias narrativas e questões, apontando alguns absurdos enfrentados nos momentos íntimos, dos mais leves, como observações sem sentido vindas de pessoas sem deficiência, aos mais pesados, envolvendo abusos.
Essa liberdade acaba por expandir o escopo das conversas e, também, do filme. Apesar do foco ser, sempre, sexualidade, há espaço também para abordar o capacitismo de situações mais cotidianas, como o relato de um cadeirante que lembra estar esperando o sinal de trânsito abrir, quando uma pessoa da rua fala “pode atravessar agora” com a mudança no semáforo, ou a de Luciana Viegas, ativista autista, que buscou entender a experiência do ensino médio por meio de filmes americanos, somente para se deparar com uma realidade completamente diferente.
Nas entrelinhas, há também a discussão sobre uma certa falta de força histórica na pauta anti-capacitista. Se discussões sobre combate ao racismo e feminismo se tornaram mais rotineiras atualmente, o mesmo não pode se dizer sobre o debate sobre acessibilidade, fora momentos pontuais. Exemplos disso ocorreram antes, durante e depois da exibição da obra: uma mulher não pode assistir à produção, pois o Odeon não possui cadeiras para pessoas gordas, uma pessoa da equipe do cinema tentou barrar um cadeirante, alegando lotação e o debate, geralmente feito no palco do cinema, teve que ser realizado no chão, pois não há rampas de acesso.
A importância dos relatos em Assexybilidade é evidente, mas ele não se contenta somente em ser um “filme importante” ou de “mensagem”. Há momentos que revelam uma disposição para fazer piada com a própria posição, como a prolongada esquete onde um dos entrevistados tenta, sem sucesso, abrir um pacote de camisinha, e uma divertida provocação com a imagem da dominatrix, geralmente vista como uma mulher branca e padrão, aqui ela é cadeirante, e seus submissos carregam sua cadeira de rodas escada acima e abaixo. Existe muito o que debater e desconstruir, e Daniel não só traz relatos que mostram isso, mas busca também criar imagens próprias, propondo a criação de um outro imaginário acerca do tema, afinal, o sexo não pertence só aos corpos padronizado, é de todo mundo que o queira fazer.
Essa crítica faz parte da cobertura do Senta Aí do Festival do Rio 2023