Crítica – Paloma

Sonhar com novas possibilidades de existência tem sido o tema de alguns filmes brasileiros esse ano. Diante de um cenário onde o futuro parece ser tão sombrio, faz todo sentido. Marte Um, após a eleição de Bolsonaro, uma família tenta enxergar alternativas para uma existência mais tranquila. No longa Os Primeiros Soldados, não se trata tanto de sonhar, mas sim de criar uma nova imagem para si, recusar o apagamento histórico das populações LGBTQIA+. Ambos de olho em coisas melhores, sem esquecer que a realidade é difícil, para dizer o mínimo.

Paloma navega esse mesmo território. O filme de Marcelo Gomes, grande vencedor do Festival do Rio deste ano, acompanha a personagem titular, interpretada por Kika Sena, uma mulher trans que vive tranquilamente com seu namorado Zé (Ridson Reis). Sua existência parece ser respeitada por todos ao seu redor, e os primeiros momentos da narrativa são quase um ode a vida pacifica que o casal leva, se deliciando com os pequenos momentos de carinho compartilhado pelos dois. “Queria que isso durasse para sempre” diz a protagonista, enquanto faz carinho no rosto do parceiro.

Essa situação, entretanto, logo encontra seu limite, quando Paloma expressa um desejo muito simples: o de casar numa igreja, com véu e grinalda como tantas mulheres fizeram e irão fazer. Essa vontade tão singela, quando exposta inicialmente, já vira motivo de chacota, até mesmo de uma pessoa próxima, uma amiga (?): “Onde já se viu isso?”. Ao falar com o padre da região, há o acalento dele tratá-la com certa amizade, mas não dura muito. Ao ouvir o pedido da mulher, logo recai no preconceito com base bíblica, afirmando que casamento é só entre homem e mulher.

Por boa parte de sua duração, Paloma não aborda a violência mais explícita que cerca a vivência de pessoas trans, e se mostra interessado nesses mais sutis, mas não menos dolorosas, que evidenciam o quanto a existência plena de Paloma é efêmera, condicional. A terrível frase “respeito, mas não concordo” vem à mente. Paloma é respeitada, desde que ela não tente ser uma “mulher de verdade” aos olhos daqueles que a cercam.

Mas isso não significa que Gomes está alheio as atitudes mais brutais que a sociedade toma em relação à população trans. Um caminhoneiro que a transporta para o trabalho olha para a protagonista, seu olhar é desejo, curiosidade ou acusador? A resposta é dada, mas não sem antes certa tensão por parte dela, que se revela plenamente justificada mais adiante na narrativa, quando a intolerância é responsável pela morte de uma amiga.

Resgatando a comparação a filmes brasileiros recentes, Paloma me lembra muito Valentina, no sentido de não colocar a dor e sofrimento como o ponto narrativo dessas pessoas trans, além de buscar a todo momento enfatizar a plenitude dessas existências: nem Paloma nem Valentina tem problemas com as suas identidades, errados estão os outros em não as aceitarem.

Se Paloma não conclui com alegria, também não há tristeza. O mais importante é que sua capacidade de sonhar, e de existir, continua. Realizar seus desejos podem gerar mais problemas, é claro, mas que isso jamais retire nossa vontade de olhar para o futuro, e imaginar que ele possa ser mais brilhante.

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