Crítica – Marte Um

“Mito!” grita alguém, sons de fogos – ou tiros – marcam a paisagem sonora dos primeiros minutos de Marte Um. “É Bolsonaro!” logo vem em seguida. É o fim das eleições de 2018, e o resultado todos sabemos: Jair Bolsonaro é eleito presidente da república, e quem prestou atenção já imaginava que os anos seguintes não seriam fáceis, mas talvez nem os mais pessimistas (ou seriam realistas?) poderiam prever o desastre que essa administração seria para o Brasil, que ela tentaria de modo efetivo matar sua própria população.

Se o filme de Gabriel Martins começa com essa cena, cria-se a expectativa de que será uma narrativa que irá lidar diretamente com os efeitos dessa eleição, com um debate político explícito. Todavia, logo essa expectativa é subvertida. Bolsonaro presidente é catastrófico, mas uma coisa curiosa aconteceu após sua eleição: a vida continuou, crianças foram para a escola, pessoas pegaram condução para irem trabalhar e outras foram para a balada a noite tentar beijar na boca. O mundo pode até ter acabado, mas o sol nasce e a vida segue.

E é exatamente isso que vemos logo em seguida, quando somos apresentados a família que protagoniza Marte Um. Deivinho (Cícero Lucas) é o filho mais novo, encantado pelo mundo das ciências, mas que sofre com a expectativa criada pelo seu pai, Wellington (Carlos Francisco) de que será um grande jogador de futebol. Wellington trabalha como porteiro em um prédio da alta classe mineira, onde é muito querido e respeitado pelos moradores, especialmente a síndica, entretanto cujo salário não aumenta há algum tempo. Eunice (Camila Damião) é a filha mais velha, que está engatando um relacionamento com outra mulher, e não sabe como contar isso nem sobre sua vontade de sair de casa para os pais. A mãe, Tércia (Rejane Faria), trabalha fazendo faxinas, e passa a sofrer com crises de ansiedade após uma pegadinha particularmente de mal gosto.

Mesmo com o foco no cotidiano, Martins não se esquece de um aspecto menos concreto, mas não menos importante, da vida rotineira, que é a capacidade de sonhar com algo mais do que aquilo que parece definido para alguém. A produção é cercada de imagens que flertam com essa possibilidade de uma vida maior, e melhor. O céu é presença recorrente, refletindo os sonhos de Deivinho em participar da missão “Marte Um”, que dá nome ao filme, e Eunice possui um lindo momento íntimo com a namorada no apartamento que visitam, agindo como se já o local já fosse delas.

A rotina dos pais também possui esse contato com novas possibilidades de vida, mas já sem a possibilidade de sonho, fazendo parte da rotina dos dois. Tércia limpa os apartamentos de pessoas ricas, com direito a participação especial do humorista Tokinho, possuindo até mesmo relação de “amizade” com alguns, só que no momento de necessidade, estão sempre indisponíveis, e Wellington, por mais que ele faça pequenos serviços para a síndica do prédio, sua recompensa é sempre uma farinha especial, nenhum retorno financeiro.

Mesmo com o governo Bolsonaro no plano de fundo, Marte Um pouco faz menção direta a ele, os problemas encarados pelo quarteto são coisas que existiriam com ou sem o Bolsonaro: um pai que não entende muito bem os seus filhos, contas que acumulam, um emprego que se perde. Pode soar que, com isso, Martins quer minimizar os impactos do Bolsonarismo. Bão é o caso. É esse tratamento da figura do presidente que permite que os sonhos também possam florescer. O bom e o ruim são constantes na vida, Bolsonaro, não.

“A gente tá fudido nega!”, diz Wellington após um dia onde tudo deu absolutamente errado, e naquele momento, é a mais absoluta verdade, com todos os sonhos que ele tinha para sua família esfacelados diante de seus olhos. Na cena final do filme, Wellington olha para cima, e pergunta para o filho quanto custaria para participar de “Marte Um”. “Milhões de dólares pai”. A resposta? “uai, a gente dá um jeito”, também sendo a mais absoluta verdade. Estamos, sim, completamente fodidos, mas nós também daremos um jeito. Assim é a vida.

Texto para nossa cobertura do Festival de Sundance 2022

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