O conflito de gerações em A Mula

As flores de lírio cultivadas por Earl Stone (Clint Eastwood) já dão uma noção da ingenuidade e pureza de seu personagem. Todavia, como é possível notar logo em sequência, ele gosta de estar no centro das atenções todo o tempo. Isso acaba levando para o floricultor uma vida de um eterno distanciamento com sua família, sem saber como se perceber no atual momento do mundo. A atual geração sobrevive pelo comércio online, acabando com o trabalho da vida do homem de, agora, 90 anos. Nessa história, Earl parece querer estar relacionado ao tempo em que está, acabando entrando no trabalho de transportador de drogas: uma mula.

Dentro de toda essa sutileza e concepção dramática inicial, o diretor (também Clint Eastwood) transforma todo o olhar dessa trama sob o ponto de vista de seu protagonista. Sua busca pela afirmação, fora do seio familiar, é sempre declamada nos planos em que coloca o homem no centro da tela, como quando ele entra em uma feira. Porém, a contradição já se mostra perceptível por aparecer, em primeiro instante, no fundo das cenas quando está com sua família. Parece sempre esnobado, deixado de lado, por tudo feito pelo mesmo. Sua conexão acaba sendo a figura mais nova, sua neta Ginny (Taissa Farmiga), a única realmente a acreditar nele. A vida do crime, então, entra de uma forma a estabelecer uma moral de colaborar ao crescimento dela. A partir desse preceito, a obra engloba o conflito geracional como seu tema base.

O personagem de Stone está acostumado a um outro mundo, em um machismo claro – composto de maneira mais clara nas filmagens dos corpos femininos em uma festa -, em um racismo nas palavras (ajudando um casal negro, mas se utilizando, sem intenção, de um vocabulário depreciativo). Sua relação com esse passado é reforçado em diversos pontos do próprio longa, demonstrando sua placa de veterano da Guerra da Coreia ou até mesmo as constantes críticas ao uso de celulares pelos mais novos. Ao renegar esse presente, inclusive, ele consegue se fazer ainda mais despercebido por investigações policiais dos Narcóticos, liderados por Colin Bates (Bradley Cooper) e Trevino (Michael Peña).

Eastwood ainda elabora mais sobre esse ponto ao trabalhar a questão dos mexicanos como um ponto central de uma certa “vilania”. Entretanto, esse lado passa a ser até feito de maneira crítica, com uma demonstração de um racismo perante esses grupos, algo demonstrado nas cenas da hamburgueria e na cômica sequência da batida policial. É importante salientar essa maneira de observação dos diferentes inimigos. Se anteriormente eram os comunistas, representado pelo seu combate na Coreia, hoje eles são mais aproximados. Ao colocar isso a prova, o cineasta ainda desmembra mais de como essa atualidade também conserva algo velado, porém sempre presente no meio social. Ele ainda consegue transportar todos esse novo universo mostrando um grupo de motoqueiras lésbicas e um bandido gay. Para o diretor, essas “novidades” fazem parte de um novo momento do mundo e devem ser salientadas.

A encenação proposta sempre traz em destaque os mais variados instantes da modificação dos Estados Unidos. Até por isso, se existe um foco bem grande nas trajetórias de Earl para deixar as drogas, salientando as passagens pelos desertos americanos e da presente música country. É uma forma também de observar esse passado com um certo brilhantismo, pelos olhos do personagem principal. Todavia, novamente, a película confronta esse lado ao por o personagem também dançando com músicas pop atuais – no casamento de sua neta e na festa do tráfico. É uma imersão às novas perspectivas e novas ideias presentes no mundo.

É interessante ainda a forma como a obra aborda um crescimento dramático. A constante jornada de viagens modifica a visão de Stone perante aos valores familiares, algo ainda expresso pela valorização dos tons de cores da fotografia de Yves Bélanger. Dessa maneira, esse conceito estabelece um vínculo claro com road movies mais clássicos (É até possível traçar um paralelo da relação entre crime e drama para com O Mundo Odeia-Me, de 1953). Ao buscar essa carga dramática das profundezas estabelecidas pelos planos no começo, o filme entra em um terreno quase moralista. A valorização da família é posta em pequenas cenas, como na do café, e catapultada pela recepção da morte. Isso se torna importante devido a toda a ideia das gerações necessitarem de um legado, uma espécie de honra familiar sendo proposta. Se quer voltar para o passado, mas apenas a atualidade está na sua frente.

O longa ainda move-se em todo o lado do suspense proposto de maneira mais direta pela trama. Toda a perseguição da polícia acontece de maneira um tanto quanto aleatória pela montagem, acabando por parecer sempre jogada em alguns pontos. Apesar disso, no terço final ela se estabelece de maneira mais presente ao formar-se um ponto de fuga único. A montagem paralela, inclusive, é utilizada sempre na construção dessa tensão, seja com a aparição do cachorro ou no grande clímax. Esse evidenciamento traz uma certa necessidade da urgência, ao mesmo tempo que mexe com a ambiguidade do público em torcer para o protagonista.

A Mula segue uma linha de filmes mais tragados por um realismo de Clint Eastwood. Invictus, J. Edgar, Jersey Boys: Em Busca da Música, Sniper Americano, Sully: O Herói do Rio Hudson e, por fim, 15h17: Trem para Paris já buscavam entender suas histórias sob uma perspectiva realista. Aqui, o cineasta parece buscar explorar um outro lado da realidade: o choque entre gerações. Ao propor isso, ele vai direto dentro das temáticas que gosta de trabalhar mais diretamente. É realmente impressionante perceber como Eastwood, com seus quase 90 anos, parece querer entender todos os acontecimentos a sua volta, até aqueles que não sejam de seu agrado.

Comentários

Cláudio Gabriel

É apaixonado por cinema, séries, música, quadrinhos e qualquer elemento da cultura pop que o faça feliz. Seu maior sonho é ver o Senta Aí sendo reconhecido... e acha que isso está mais próximo do que se espera.

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