Em defesa da trilogia Halloween, de David Gordon Green

Esse texto contém spoilers de Halloween, Halloween Kills e Halloween Ends

O último plano do filme final da trilogia de David Gordon Green, Halloween Ends, é a máscara de Michael Myers colocada a relento, no meio de uma sala, em cima de uma mesa. Uma visão aparentemente banal, mas que reforça a grande tese que o cineasta busca ao longo das três produções: analisar a concepção do mal na sociedade pós-moderna. E isso é feito de três formas diferentes também entre si, porém prosseguivas. A primeira, em Halloween, de 2018, através de uma observação sobre o descontrole do mundo atual, que faz ser possível todo esse cosmo ganhar força novamente. A segunda, com Halloween Kills, em 2021, no qual o diretor vai colocar esse mal como parte da estrutura social pós-moderna (enquanto continuarmos desse jeito, ainda teremos esse assombro atrás de nós). E, por fim, na terceira, em Halloween Ends, de 2022, ao falar sobre como essa estrutura no mal se perpetua nas narrativas de uma juventude que é a face da contemporaneidade.

Assim, é possível observar como as obras partem de uma análise um tanto quanto conservadora de mundo. Diferente do original de 1978, de John Carpenter, em que – diferente do que se foi demarcado no slasher – não era o lado sem pudor da juventude que causava as mortes, mas a falta de atenção com a sociedade coletiva, aqui o individual toma conta da trama. Aliás, toma tanta conta que, iniciando do de 2018, temos uma história focada na grande dicotomia entre uma ideia ultrapassada de bem e mal, representadas por Michael e Lauire. O primeiro incapaz de ser visto (tanto que não aparece sem máscara em momento algum), e a segunda que busca proteção contra tudo e contra todos. Ela vive trancafiada, acreditando ser capaz de lutar contra algo que faz parte do ser humano no século XXI.

Neste sentido, podemos analisar a trilogia também como fatalista. Os seres humanos são assim e ponto, incapazes de mudar. Isso é algo inerente de uma natureza prévia. Em uma visão religiosa da coisa, todos somos pecadores, no fim das contas, independente do que fazemos. Muitos podem olhar toda essa perspectiva e correlacionar com a banalidade do mal, conceito clássico de Hannah Arendt. Entretanto, podemos também olhar os filmes de um prisma do historiador Jean Delumeau no livro História do Medo no Ocidente. Ele fala sobre a construção do medo como fenômeno ineremente social, e que gerava conflitos entre “medrosos” e “não medrosos”. Contudo, também existe aquele relacionado ao indivíduo, e construído sob a tese a infelicidade. Ou seja, algo irá te deixar infeliz para o futuro e, por isso, você deve sentir medo.

A trilogia se relaciona muito com essa tese ao transformar todos os seus personagens em figuras meramente medrosas. Eles todos possuem medo do futuro. Desde o psicólogo, que está nos dois primeiros longas, até Laurie, a heróina base da saga. O medo tomou conta de uma sociedade que teme ser infeliz. Juntando isso, Gordon Green puxa o preceito da liquidez de Zygmunt Bauman para falar sobre a pós-modernidade. Enquanto somos seres menos coletivos e mais individuais, passamos a ser mais medo e o mal se alimenta disso. Ao par que ele ganha força, o mal se torna coletivo novamente, e parte integrante de uma camada da sociedade.

Dessa forma, o primeiro Halloween está mais atrelado a uma condução mais clássica – até mesmo como filme de terror. O que o cineasta coloca ali são as bases de construção de um mal que vai ganhar dimensões filosóficas com o passar da trilogia. Ele pode ser, de início, apenas representado em uma figura única (o vilão, no caso). Porém, suas atitudes perpetuam em um escopo social.

Assim chegamos em Halloween Kills, o auge dos três. É nele que as teses agendradas no primeiro se perpetuam, e ganham forma. No sentido, especialmente, da convulsão social que o longa vai transformando em uma forma de demonstrar como o mal faz parte dessas figuras sociais. Desde alguém aparentemente da paz, até mesmo uma pessoa que busca a vingança de todas as maneiras. Essa ideia antagônica, muito respaldada pelo medo crescente devido a reaparição de Michael, se transforma em um elemento central da trama e da encenação. Não a toa, mais do que nunca, Myers é alguém representado como imbatível, até mesmo depois de ser tanto agredido como no final, e de estar em uma casa em chamas no começo. Ele é alguém que está muito além de uma figura física, representa um preceito, que parece imbatível até mesmo para aqueles que se consideram valentes. O mal reinou, ganhou um corpo e ainda um preceito filosófico para chamar de seu. Assim, nem mesmo a justiça “comum”, e nem a justiça pelas próprias mãos, é capaz de lutar contra ele.

Tão introjetado na sociedade, o medo é parte de um domínio público. Ele é o que torna a cidade de Haddonfield (a ficctícia das tramas) única. Ou seja, o individualismo tomou tanto a simples existência de todos, que vivem apenas sob o âmbito dos próprios preceitos, que cada um deles constrói suas próprias ideologias, missões e até mesmo definem quem será salvo ou não. Trazendo mais um preceito filosófico, essas personas são animais políticos só que, justamente por isso, transforman-se em figuras puramente únicas e não mais coletivas.

É em Halloween Kills também que se constitiu um elemento central para o terceiro filme da saga: a ideia de que, dentro da pós-modernidade, é a juventude que perpetua o mal. Mais uma vez, Gordon Green lida com um conservadorismo na forma e nos conceitos discutidos. Ele observa as figuras adultas como simples espelhos do seu passado, vivendo sob os mesmos problemas e dogmas – as crianças que se tornam adultos e buscam vingança do vilão mostram bem esse quesito. Dessa maneira, Allyson, neta de Laurie, é alguém alçada na condição de intermediária de uma geração com problemas mau resolvidos, e de outra, atual, que é capaz de fazer o mal retornar.

Sendo assim chegamos em Halloween Ends. O filme vai basear toda sua forma em um coming of age adolescente, ao mesmo tempo que um “primórdio” de um assassino. Desse jeito, os jovens se transformam em protagonistas de uma história que tem todos elementos tradicionais adolescentes: bullying, vontade de fugir, sexo, paixão, amizades e traição. Esse cataclisma do mal agora essa eclodindo em quem fomentou as bases para que Michael Myers retornasse. A juventude, sem nenhum senso de uma vivência e dos valores do passado, abre espaço para a perda dos elementos tradicionais do coletivo. São seres puramente individuais e que agem, mesmo que em grupos, apenas para si mesmos (o grupo dos “valentões” – formado, essencialmente, por um menino branco, uma negra e um menino emo, como maior exemplo disso).

A figura de Michael é retida em boa parte da narrativa como alguém subdimensionado. Ele não é mais importante como ele mesmo, assim como Laurie também não é. O mal parte tão única da sociedade pós-moderna que até mesmo os bonszinhos se aliam a ele – a relação entre Allyson e Corey. Gera até comparativos com boa parte das produções de terror atuais chamadas de “pós-horror”, caso de Hereditário e Corrente do Mal. Ou seja, é como se David Gordon Green mostrasse que, com essas personas atuais no comando da sociedade, tudo perde o controle. A luta final entre Laurie e Michael, em que quase um romance indireto é constituído, mostra bem como o filme reforça que esse senso moral foi perdido, capaz até mesmo de fazer o vilão perder a máscara e continuar lutando.

De fato, a trilogia Halloween dos anos 2010-2020 não é composta por filmes que tentam retomar o slasher como parte integrante do terror contemporâneo. Eles estão atrás de querer refundar o gênero, de colocá-lo em cheque perante o mundo atual. São três filmes que olham para o atual momento do horror e da pós-modernidade como um problema, com uma necessidade por parte do diretor de querer fazer algo que não fale sobre a atual juventude, mas sobre o estado de espírito. Acima de qualquer coisa, essa tese de mundo e de cinema pode não ser a que todos irão concordar. Entretanto, funciona de forma perfeita dentro de uma trilogia que fala sobre a construção do mal no mundo contemporâneo.

Comentários

Cláudio Gabriel

É apaixonado por cinema, séries, música, quadrinhos e qualquer elemento da cultura pop que o faça feliz. Seu maior sonho é ver o Senta Aí sendo reconhecido... e acha que isso está mais próximo do que se espera.

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