Resenha – Dias de Areia (HQ)
As primeiras cenas de Dias de Areia, nova HQ da holandesa Aimée de Jongh publicada pela editora Nemo, demonstram um cenário inóspito. É nesse ambiente que toda a narrativa do fotojornalista John Clark vai se desenvolver. Ele está enterrando algo e se pergunta como está ali, como foi parar naquele lugar. É um ambiente, é claro, forjado, modificado. A natureza não é feita em si por covas para enterrar corpos, mas está mudada ali, por uma intenção humana. No fim de tudo, os seres humanos modificam realmente todas as coisas, senão não estaríamos no local em que estamos. Mas esse debate, e essas sensações, estão presentes na trajetória do fotógrafo.
Clark é contratado por uma agência do governo dos Estados Unidos para ir até uma região chamada de Dust Bowl – representado também pelo filme e livro As Vinhas da Ira. Esse é um fenômeno climático de recorrentes tempestades de areia que transformam um terreno em totalmente arenoso. O local, que antes era totalmente próprio para plantio, se torna praticamente um deserto. O fotojornalista é chamado para tirar fotos de moradores desse ambiente, e demonstrar, através de uma lista, todas as suas formas de vida, e experiências com tudo a sua volta. Contudo, John acaba se envolvendo demais com seu objeto de estudo, e passa a se ver como parte desse local.
De Jongh consegue construir algo bem curioso com sua narrativa: uma opressão em um cenário tão gigantesco. Ela foca pouco, aliás, nos planos com muito close, e busca sempre reforçar o contraste do protagonista – que é parte do nosso olhar sobre o Bowl, com curiosidade e confusão – com a imensidão de uma espécie de deserto construído. Dessa maneira, assim como todos os moradores da região, ele se enxerga como uma pessoa isolada do mundo e, ao mesmo tempo, afetada pelas tempestades e pela falta de vida no local.
Dias de Areia, contudo, também está atrás de debater as formas da encenação humana. Como dito no início do texto, as primeiras sequências já geram um constraste óbvio entre o natural e o artificial, o que o humano toca, muda. A fotografia é, desse jeito, uma válvula de escape para todo o debate sobre essas mentiras criadas. Assim, o personagem é logo apresentado, ainda na agência, a uma foto que foi montada para reforçar os problemas de uma determinada região. É dito para John Clark pensar em algo similar, mas ele simplesmente não consegue. A realidade e a natureza são tão opressoras e onipresentes, que fazem ser impossível conseguir “mentir”. O real está ali, por toda a parte.
Toda a produção da HQ ainda reforça o olhar sobre as encenações das próprias relações e casas. Famílias, mesmo que precisando estar próximas, são distantes, fingem algo. Ao mesmo tempo que familiares também tão próximos, parecendo tão parceiros, apenas se enganam em um universo que a tristeza toda forma em todo local. É realmente curioso como a artista transforma o mundo dessa história em “fake”. Apesar da realidade estar óbvia, ela é quase também inventada, e tudo está atravessada por um ambiente em que não há cor – a roupa de todos e as casas reforçam isso, do mesmo modo.
Em um cenário sem futuro e sem felicidade, resta apenas contentar-se com os poucos momentos de alegria. Seja isso no próprio ambiente, ou em uma possibilidade de fuga, de encontrar algo novo e uma possibilidade de viver feliz. Aimée de Jongh compõe em Dias de Areia um quadrinho sobre tantas relações e possibilidades e, ao mesmo tempo, uma obra sobre nada, sobre lugar nenhum. Apesar sobre as mentiras que a própria humanidade criou. Isso está desde o próprio terreno impróprio para vida até o uso da foto como artifício. A mentira dominou a todos nós. Resta apenas aceitar que a natureza perdeu.