Crítica – Doutor Sono

Doutor Sono é um filme sobre traumas. Traumas esses que construíram o personagem Danny Torrance (Ewan McGregor), logo após seu pai ficar louco e tentar matar ele e sua mãe – fato esse acontecido em O Iluminado. Esses mesmos traumas na qual o tornaram uma pessoa altamente fora da realidade, em um mundo quase paralelo. Esses que ainda consolidaram toda uma complexa infância de Abra Stone (Kyliegh Curran), descobrindo seus poderes comunicacionais desde cedo. O problema é como essas questões podem criar outras. No caso, com a vilã Rose (Rebecca Ferguson) que, junto de sua equipe, necessita sobreviver sugando a alma e o tempo de pessoas jovens, em uma espécie de vampirismo.

Esses elementos podem ser confusos, mas são eles a construírem a narrativa desse longa, continuação do livro (e também do filme) escrito por Stephen King. Vemos quase uma nova realidade composta por aqui. Enquanto o clima das montanhas e as diversas árvores rondavam o mundo na obra original, aqui estamos em um cenário urbano predominante. Danny tem um olhar bastante dúbio. Sofre diretamente ao rememorar todo o passado, ao lembrar de toda a complexa relação tida com o Jack (Jack Nicholson). Por isso, vive bêbado e drogado, apenas buscando algo novo devido a reencontrar seu amigo Dick (Carl Lumbly) em imaginação.

Desse jeito relatado parece que nem estamos envolvidos em uma história de terror pela questão do medo mesmo ainda não estar introjetada. Contudo, é nessa base dramática a maior sustentação do roteiro e da direção de Mike Flanagan. Assim como diversas das suas outras produções, o elemento familiar é mais relevante para o desenvolvimento da afeição aos personagens. Essa estabilidade dramática, até pouco vista no Iluminado pelas intenções diferentes, funciona para trazer um quesito de maior relevância a obra: a tensão. Essa trabalhada também pelo susto, mas vista muito mais como um elemento de catarse do suspense.

Enquanto há um terror totalmente psicológico presente nessa camada citada anteriormente, o lado fantástico é assumido mais claramente aqui. E, assim, talvez acabe sendo o maior problema do longa. Há uma inconstância frequente dentre os tons apresentados. Um exemplo bem direto para isso é quando estamos vendo um grande jogo mental em uma caça a Abra. Entretanto, no meio, somos levados por um tiroteio digno de tramas de ação. Esses constantes cortes acabam trazendo a narrativa como sempre inchada, até por Flanagan parecer não saber bem qual lido ir. Homenagear/referenciar o original ou buscar um DNA bem próprio?

Isso se repete a todo instante no ato final, isso de uma forma mais clara. A carga fantasiosa assume de vez a cara dentro da produção, todavia de um jeito meio estranho. O andar de Danny por todo o hotel Overlook parece uma espécie de caminhada em um museu, em busca de rememorar todo o acontecido. Ali, as cargas emotivas tomam conta em forma de monstros. Assim, a direção busca uma brincadeira entre verdade e mentira, algo típico do cinema de John Carpenter, porém falta uma fluidez para abraçar realmente isso. Tudo parece meio emperrado, chegando ao grande clímax como se fosse a primeira cena.

Observando o trabalho completo, parecemos estar em uma produção sem unidade. Talvez por pisar em alguns bons vidros quebrados – principalmente pela relação conflituosa de King com a adaptação de Stanley Kubrick. Mike Flanagan talvez seja um dos cineastas de gênero mais interessantes da atual geração por saber buscar uma realização bem própria através de elementos antigos e novos. O susto em seus filmes acabam sempre quase sendo uma arma para realizar um jogo dos protagonistas, como em O Espelho.

Em Doutor Sono, no entanto, parecemos ver algo que sente falta de uma maior liberdade cênica, uma maior vontade de arriscar, como a câmera livre de Kubrick no original. Isso causa uma obra com um certo receio de ser algo bem particular, apesar de construir bem uma base de fontes nesse sentido. Seu drama, catapultado belíssimamente no fim, parece se ver em meio de um caos completo. É impossível dizer que não funciona por completo, até porque seria um erro relatar isso. Porém, o visto parece ser apenas uma casca de tudo pensado. Uma casca que, assim como as caixas do longa, parecem aprisionadas na mente de seu realizador.

Comentários

Cláudio Gabriel

É apaixonado por cinema, séries, música, quadrinhos e qualquer elemento da cultura pop que o faça feliz. Seu maior sonho é ver o Senta Aí sendo reconhecido... e acha que isso está mais próximo do que se espera.

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