Crítica – Madres Paralelas
A primeira cena de Madres Paralelas, novo filme do gigantesco cineasta espanhol Pedro Almodóvar, mostra já uma relação com o passado e futuro que vai consolidar a sua história. Janis (Penélope Cruz) observa e fala sobre as perdas e sofrimentos de sua família com a ditadura de Franco no país, causando apenas dor. E isso está presente também na pesquisa de um homem que ela se relaciona. Dessa forma, todo esse imaginário não é apenas individual, mas coletivo da vida de todas essas personas moradoras do país – independente de apoiarem ou não tudo que aconteceu. E, assim, como conseguir imaginar o futuro se todas as feridas do passado ainda continuam? É isso que a protagonista vai precisar refletir após descobrir que está grávida.
O diretor segue uma linha similar de perspectivas de tempo ao feito em Dor e Glória. No entanto, se lá existia algo bastante personalista da própria história de Almodóvar, aqui é como se ele buscasse questões além propriamente de apenas uma personagem. Até porque o grande fator decisivo nessa história é a conexão de Janis com Ana (Milena Smit), uma outra mãe que está na mesma paternidade e dá luz também no mesmo dia que ela. A relação entre as duas passa de apenas um conhecimento para uma amizade e preocupação mútua. É nesse sentido, especialmente pelo fato de uma ser mais jovem e outra mais velha, que vemos quase um entendimento temporal do sofrimento para o futuro.
E para debater todos essas temáticas sobre o tempo, Madres Paralelas traz o melodrama tradicional para uma pespectiva mais fria. Os corpos e personagens parecem ter menos uma necessidade de se expressar perante tudo, quase como se o cansaço de uma existência perene tivesse abatido todos. Por exemplo, as cenas de sexo são muito menos carnais e se transformam mais em um olhar quase voyeur dessa situação. Porém, elas pouco traduzem uma conexão entre personagens, estando mais atreladas a uma tentativa de buscar algo que gere sentido a existência.
Isso faz o filme, a todo instante, nunca esquecer dessas feridas de um passado. Não apenas aqui de um lado coletivista, essencialmente político, mas também em um caráter das perdas e problemas individuais. A frieza também na interpretação das duas protagonistas traz esse olhar de uma tristeza inerente simplesmente por viver dentro da Espanha e que a perspectiva feminina causa também algum impacto. Por isso mesmo, é até bem interessante todo o desenvolvimento familiar pessoal das duas, em que os problemas maternais criados parecem quase desembocar no que será a relação com as crianças que nasceram futuramente.
É um ciclo de sofrimentos que parece que nunca terá verdadeiramente um final. Até porque todos os personagens viram parte de tudo que isso que aconteceu em um passado remoto e que irá eternamente estar relacionado com o futuro, na forma como a sociedade irá lidar com todos esses aspectos. Em certo sentido, trazendo para uma realidade nacional, é como se pegasse toda uma sociedade pós-ditadura militar e colocasse ela em tempos atuais, vivenciando um sofrimento que parece não ter fim. E até que ponto realmente lutar contra essa angústia de uma época vale a pena?
Nesse sentido, todo o embate geracional também é curioso nas mãos de Almodóvar, principalmente por um certo mal-estar líquido da civilização contemporânea. Mas o diretor está longe de criticar isso, ele abraça esse lado de sofrimento puro dentro da personalidade de Ana, que se transforma em uma pessoa que nunca parece ter verdadeiramente uma perspectiva pessoal. Enquanto isso, sua filha, parece ser a única realidade possível, incapaz de gerar alguma perda ou desgraça, como teve durante todo o pouco tempo de vida.
Madres Paralelas está muito longe de ser um longa fácil ao ser digerido. Se Pedro Almodóvar construiu toda sua carreira com base muito em comédias e tramas exageradas, ele parece cada vez mais distante disso, em uma reflexão profunda sempre sobre o passado e futuro. Se vivenciamos apenas sofrimentos, qual a perspectiva de alguma felicidade no meio disso tudo? Além disso, se o passado político destruiu o que poderia ser algo mais feliz no presente, onde haverá espaço para a construção de algo pelas próximas gerações? O cineasta não parece ter a resposta. Mas, ao trazer essas perguntas, é quase como ele implorasse para o telespectador trazer alguma.
Esse texto faz parte da nossa cobertura do Festival do Rio 2021