Crítica – Meu Pai

A primeira e a última cena de Meu Pai dialogam profundamente com a ideia de liberdade. Enquanto na inicial vemos Anne (Olivia Colman) andando pela rua até a casa de seu pai, em um dos poucos respiros que terá ao longo do filme, na final observamos Anthony (Anthony Hopkins) retroceder para sua infância. Tais sequências descrevem bem o misto de sensações e perenidades que a obra irá tocar, ao abordar a relação entre pai e filha tocadas pelo Alzheimer da figura paterna. Ao não ter um total reconhecimento do todo, trocar tempos, espaços e situações, as dificuldades se apresentam em como conviver com essa confusão na memória.

Porém, antes de trabalhar verdadeiramente esse caráter mais dramático da trama, a narrativa busca explorar um desenvolvimento sempre curioso do relacionamento de ambos. Anne abdica de muita coisa para poder cuidar de Anthony, incluindo tendo que levá-lo a sua casa e causando problemas com seu marido, Paul (Rufus Sewell). Ao mesmo tempo que há um sentimento de tristeza por esses momentos perdidos – muito representados em situações mais lisérgicas, como o pingo da água numa torneira -, há também uma sensação de zelo, carinho. Contudo, seu pai, por conta dos diversos problemas de memória, a trata mal em alguns instantes e bem em outros, mas sempre em um grande receio de controle da casa (que ele diz ser dele) ou fazendo comparativos de inferioridade com uma outra irmã de Anne.

Esse destaque para as nuances do relacionamento familiar é fundamental para o caráter mais ativo da obra, que é a questão da doença do pai. O estreante diretor Florian Zeller utiliza o filme sob o ponto de vista de Anthony propriamente. Dessa maneira, nada é totalmente claro, incluindo a linha temporal dos acontecimentos. O detalhe mais importante nesse sentido é a ida da filha para morar em Paris, fato que aparece sempre de forma esporádica e delimita alguns tempos narrativos. Da mesma forma, a presença das cuidadoras também é relevante para Meu Pai na intenção de explorar as personalidades do protagonista perante outras pessoas. Todo o diálogo de entrada de Laura (Imogen Poots) na história reverbera bem esse elemento.

Vivendo nessa prisão mental, em não saber mais em que lugar está ou em qual momento, a direção sempre busca os momentos de liberdade como uma fuga eterna. São eles a maior busca por parte desses dois personagens que movem os acontecimentos. A do pai, a de poder entender com maior lucidez o que está acontecendo. Já a da filha é de poder se dar um respiro em relação à figura paterna. A cena em que Anthony vê na janela um menino brincando com um saco plástico, é aonde ele se observa querendo estar, especialmente. Esse uma busca menos concreta, nesse sentido, mais relacionada a memória. Já Anne se relaciona com a liberdade como forma material, como na saída do país ou em simplesmente estar na rua.

Esses elementos transformam Meu Pai em um filme que busca abordar uma multiplicidade de visões sobre um mesmo tema. Não a toa, deverá ter continuações abordando outros pontos de vista para a mesma trama. Contudo, dentro dessa narrativa trabalhada aqui, já é possível observar esse papel das diferentes visões em busca de um entendimento. A figura de Paul tem um caráter importante nesses momentos, por simplesmente puxar ambos os protagonistas para um caminho mais tênue, de uma fuga irreal e real. Ele parece ter muito mais intenções, que nunca são realmente demonstradas, mas se relacionam especialmente ao fato de não ter um bom relacionamento com o sogro.

Nessa constante busca por estar livre, Meu Pai traz uma poesia bem forte ao fim. Mesmo tendo a filha do seu lado o tempo todo, o pai parece sempre buscar afastá-la, quase não se sentindo seguro com sua presença. Essa segurança vem apenas de um outro lado: da lembrança da mãe, da possibilidade do afeto que a oferecia. De certa maneira, enquanto ganhava carinho de uma figura que deveria cuidar, parecia não se sentir importante, parte dessa relação. Ao acabar com esse caminho, o cineasta Florian Zeller quase observa um ciclo que se forma dentro da vida, ao qual, na nossa vulnerabilidade, estamos menos próximos de cuidar e mais de sermos cuidados – apesar de nem sempre termos isso. Já a liberdade? Essa fica para depois.

Comentários

Cláudio Gabriel

É apaixonado por cinema, séries, música, quadrinhos e qualquer elemento da cultura pop que o faça feliz. Seu maior sonho é ver o Senta Aí sendo reconhecido... e acha que isso está mais próximo do que se espera.

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