Crítica – O Sonho do Inútil
Uma imagem chama atenção em um filme tão pessoal e íntimo quanto O Sonho Do Inútil, a de um helicóptero, que sobrevoa a região que o filme se passa, Zona Norte do Rio de Janeiro. Entre imagens do passado e do presente dos amigos do diretor José Marques de Carvalho Jr, lá está o helicóptero, longe demais para ser identificado, mas não seria absurdo afirmar que é da polícia.
Até mesmo pois, nas conversas que formam o documentário, o contexto de violência da região é frequentemente levantado. Seja de modo cotidiano, onde um papo descontraído com um parente que há muito não se via traz uma frase sobre as milícias que tomaram conta da região, outro cena relembra que “cocaína e maconha” eram fáceis de se encontrar durante a juventude dos personagens, ou de modo mais direto mesmo, já que um dos personagens do longa foi morto em um confronto com a polícia.
Cabe aqui uma explicação sobre o Inútil do título, um grupo de amigos que, no início dos anos 2000, se reuniam e gravavam vídeos inspirados em Jackass, assim como outros relacionados ao mundo do skate e do grafite. O “Inútil” não existe mais, com cada um seguindo diferentes rumos na vida, José Marques então vai atrás de cada um, entendendo como o “Inútil” alterou a vida deles e colhendo depoimentos sobre o seu presente.
Há um choque muito grande entre as imagens do passado, que tratam de modo direto sobre a atividade do grupo, e as do presente, o contraste vai além da óbvia diferença tecnológica, mas de conteúdo, já que vídeos de jovens tacando fogo em si mesmo estão lado a lado com o depoimento emocionado de um pai que perdeu o filho, ou de um dos jovens, agora adulto, falando sobre querer montar uma família.
Se isso não degringola o filme, é porque Marques consegue transmitir o quanto o “Inútil” era mais que um passatempo, porém sim algo onde aqueles jovens se encontravam e se expressavam, descobrindo sua identidade no processo. Um dos grafiteiros do grupo, por exemplo, segue com o sonho de pintar e viver disso, outro virou rapper, também muito por conta dos círculos pelo qual o grupo passava.
Além de, é claro, o cenário da violência, sempre presente, deixa claro que o “Inútil” era também um escape disso, permitindo que aqueles jovens se tornassem os adultos das entrevistas, que com frequência abordam certas vitórias do cotidiano, um está prestes a ser pai, enquanto o outro conquistou a posição de chef em um restaurante.
Assim, quando a narração em cima da imagem do diretor do filme chutando uma lata flamejante de querosene contra um muro diz que “tem orgulho” do trabalho feito pelo “Inútil”, entende-se o porquê. Por mais que esse trabalho, se visto somente pelo passado, possa ser imaturo, se revela muito importante nas trajetória dessas pessoas, diante do que eles se tornaram. Apesar das perdas, o sonho do “Inútil”, de resistir e não se deixar levar, mostra-se bem real.
Esse texto faz parte da nossa cobertura do Olhar de Cinema 2021