Crítica – Pacarrete
Pacarrete (Marcelia Cartaxo) acorda de manhã cedo e começa a varrer a entrada de sua casa. Costume típico em cidades pequenas do Brasil, ela ainda complementa a ação dançando e sempre cantando “aí, aí, aí”. Essa personagem altamente divertida, é um padrão de pessoas escondidas na sociedade, porém reconhecidas por serem engraçadas como são. A partir dessa visão, a sua figura é uma mistura de arrogante e divertida, porém trazendo mais desafetos do que afetos naquela região. Como artista que diz ser, ela apenas tem um objetivo: dançar balé na festa de aniversário de Russas, cidade aonde vive. Assim começa Pacarrete.
Imposto de uma encenação sempre levada a diversão, Allan Deberton trata sua protagonista na primeira hora de filme sempre como uma piada. Porém, não necessariamente afim de rirmos de sua personalidade sempre extravagante – orientadas na interpretação de Cartaxo -, mas também nas suas atitudes, sempre rebatendo, por exemplo, a prefeita da cidade que não quer por nada sua apresentação. A protagonista dessa história demonstra-se, acima de tudo, alguém com um traçado para chegar a algo na sua vida. Não existem receios no meio disso, apenas expressar “sua arte no ballet”, como a mesma diz. Aquele ambiente quase rústico nas ruas poderia ser quebrado em uma espécie de classe própria.
Assim, Deberton consegue construir esse caminho como mais interessantes narrativamente. Sua direção traz um ar quase simplista de mundo, consolidando cada elemento daquele universo como únicos. As ruas vazias, por exemplo, causam apenas um impacto maior na extravagância de Pacarrete. Ao mesmo tempo que esse lado simples do mundo colocam a protagonista em foco, ela ainda torna-se em cheque por sua quase invisibilidade. Há até possíveis relações aqui com a direção de Guel Arraes em O Auto da Compadecida por possuir elementos similares.
O grande problema do longa é sua grande quebra acontecendo devido a um acontecimento trágico na vida dessa personagem. Ali, adentra-se um caminho mais realista a ser tomado, na qual não funciona de maneira nenhuma como transição. O principal motivo é estarmos em contato com essa mulher totalmente irreal – mesmo a história sendo baseada em fatos reais. Os momentos cotidianos são essenciais para enfermos como ela é. Assim, certas situações mais lúdicas dentro da trama parecem mais deslocadas ainda. E, quando o cômico vai embora, para dar espaço a uma construção narrativa dramática tudo parece desmoronar. Além da transição ser absolutamente abrupta, nada tem um choque realmente profundo no telespectador.
Mas, por que disso? A estrutura da obra favorece a essa problemática. Como dito anteriormente, aquele universo feito por Deberton é puramente da diversão, de uma comédia quase escrachada. Para algo dramaticamente funcionar, deveria estar desde o início da trama, especialmente nas conexões dentro da casa de Pacarrete. Entretanto, isso acaba sendo mais exterior dela com a cidade do que propriamente algo interno, gerando personagens subdesenvolvidas e não servindo a quase propósito algum.
Em uma tentativa de gerar um cinema mais urbano e trazer algumas tradições semi-regionalistas do Brasil, Pacarrete carece de algo que o sustente com mais potência. Em certos momentos, especialmente nessa segunda parte do drama, há até memórias de A Hora da Estrela, porém sempre colocadas mais como uma referência aleatória do que propriamente algo mais forte dentro do enredo. Allan Deberton consegue até fazer um filme divertido e construir um final realmente potente com tudo aquilo apresentado antes da personagem, porém faltando colocar o meio nisso tudo. Talvez é uma obra que possa crescer com o tempo, especialmente por ser uma grande representação estética e social brasileira. Talvez seja, inclusive, um longa ao futuro do país, principalmente nas cidades do interior. O problema é que, para o presente, ele funciona bem menos do que deveria.
Esse texto faz parte da nossa cobertura do Festival do Rio 2019