Crítica – Reality
Os grandes momentos da história do mundo costumam ser a culminação de diversos momentos infinitamente mais banais. Digo isso como pessoa que realizou a função de mesário na última eleição presidencial, onde o futuro do país estava sendo decidido, mas, no dia em si, tudo que fiz foi o trabalho chato, monótono e rotineiro de organizar filas e orientar pessoas a irem votar.
Essa banalidade que circunda eventos importantes é muito bem apresentada em Reality, baseada na história real de Reality Winner, veterana da Força Aérea dos Estados Unidos que vazou documentos sigilosos relacionados a eleição de 2016 para o site Intercept. Mas, antes de realizar tal ato, Reality era só mais uma funcionária em uma empresa que realizava serviços de tradução para o governo estadunidense.
A abertura do longa, dirigido por Tina Satter, introduz muito bem essa dicotomia entre o grandioso e o comum: enquanto James Comey, ex-diretor do FBI, é demitido por Trump, pessoas trabalham em seus cubículos, entre elas, a própria Reality, aqui interpretada por Sidney Sweeney, mas cujo rosto não vemos: ela está de costas para o espectador, focada no seu trabalho, enquanto a história acontece nas telas da televisão.
A situação muda um pouco de figura quando, ao chegar em casa, Reality é abordada por dois oficiais do FBI, que possuem um mandado para realizar buscas na casa da personagem. Aqui o longa revela uma parte importante do seu dispositivo narrativo, pois seus diálogos são inteiramente baseados em transcrições da situação, gravada pelos agentes. A produção é uma dramatização com base nesses documentos, conforme aspectos da vida de Reality e deus seus atos vão se revelando.
Reality é um filme baseado que se passa inteiramente em uma cena muito conhecida por qualquer um que veja filmes ou séries policiais, a da entrega do mandado, enquanto o suspeito tem a casa revirada por vários policiais em busca de provas. Mas aqui há um aspecto muito rotineiro que traz certa tensão aos procedimentos. No lugar de policiais brutamontes arrombando portas, temos dois homens fazendo perguntas comuns para Reality, ela própria com coisas mais simples na mente: “posso guardar minhas compras?” e “posso fechar a porta para que meu gato não fuja?” parecem ser suas principais preocupações na hora, e os próprios agentes possuem uma postura amigável diante da situação, com um deles contando sobre o cachorro resgatado que possui em casa.
Essa suposta amabilidade é frágil, no entanto, pois cada movimento não solicitado de Reality é seguido de uma brusca interrupção dos agentes. Essa navegação de uma situação tranquila na superfície, mas absolutamente tensa, se apoia muito na relação entre os participantes para funcionar, exacerbada por alguns elementos do ambiente, como uma porta que se fecha alto demais, um cachorro que começa a latir. A tranquilidade sempre é rompida por algum outro evento, criando um estado constante de tensão.
Inicialmente, há um mistério em relação às ações da personagem, aqueles que não conhecem a história, como era meu caso, ainda possuem a curiosidade para se engajar. O que ela fez? Ela fez mesmo ou não? Isso é uma investigação legitima ou um abuso de poder? Reality perde um pouco da força diante de sua confissão, e envereda brevemente no aspecto da denúncia diante do que foi feito com Winner após sua prisão, com declarações da jovem tirada de contexto, e até suspeitas de que o Intercept cometeu erros que ajudaram a expor a fonte. Soa como reflexão tardia, pois o que veio antes é tão preocupado com uma possível objetividade, que essa quase postura diante dos eventos fica um tanto frágil, e a força de Reality fica mais nessa cuidadosa observação entre as encruzilhadas entre a História e o mundo “normal”.
Essa crítica faz parte da cobertura do Senta Aí do Festival do Rio 2023