Crítica – Sócrates
Durante os anos 40, existiu um movimento dentro do cinema chamado neorrealismo italiano. Nesse, a proposta era ser o mais realista possível, inclusive utilizando de atores amadores, filmagens na rua e câmeras, muitas vezes, sem muita qualidade. Essa proposta foi repassada ao cinema brasileiro muito fortemente durante os anos seguintes, fazendo, inclusive, parte importante do cinema novo (a ideia do “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”). Cidades de Deus também, por exemplo, não hestiou em pensar da mesma forma para buscar uma realidade própria, um DNA nosso. A busca sempre foi uma tentativa de aprofundar nas questões específicas desse país.
Em Sócrates, o diretor Alexandre Moratto pega essas referências para criar uma obra que não se limita ao pouco. Se os tratamentos para realidades carentes acabam sempre entrando rumo as favelas do Brasil, o cineasta tenta olhar para o lado urbano. Até que ponto vai realmente a exclusão social e como ela colocada em todos os pequenos lados da vida das pessoas? Isso tudo perpassa pela história do menino de 15 anos Socrates (Christian Malheiros), na qual perde sua mãe. Ele acaba não tendo nem tempo para lamentar, pois já precisa buscar dinheiro para pagar o aluguel e ter alguma dignidade em sua vida. O problema é que todos parecem estar realmente contra ele.
Moratto busca essa abordagem do realismo para travar quase uma encenação documental. O contra-luz acentuoso mescla com a câmera sempre tremida nas andadas do personagem. Não há medo de mostrar nada aqui e, essas questões técnicas, acabam gerando ainda mais um senso de empatia perante o protagonista. Esse que se vê sem esperança nenhuma, tentando buscar qualquer coisa dentro de sua vida. Logo após a sequência inicial, quando vemos o garoto trabalhando em um banheiro, ele já estava tentando tomar suas atitudes antes mesmo do ocorrido. O objetivo para Socrates é, simplesmente, viver.
Nesse quesito, a verdadeira é realmente demonstrada pura. As exclusões sociais perpassam não apenas os becos aonde o personagem mora, mas também a rua, as não contratações de empregos, os olhares desconfiados. Tudo isso ainda se soma ao fato dele ser gay, tendo um relacionamento com um homem mais velho, Tales (Tales Ordakji) conhecido do trabalho. O relacionamento dos dois, inclusive, é iniciado através da violência, para expor claramente como o amor ou quaisquer possibilidade de felicidade não entram na vida do personagem título. Para ele, o sexo não é nem prazer, mas só uma questão. Uma questão que acaba gerando, do mesmo modo, todo o sofrimento posterior por homofobia.
A câmera grudada em seu rosto ainda nos coloca mais em sua pele. Estamos acompanhando aquele jovem, porém repetido como de outros. Não existe um sorriso na atuação de Christian, totalmente contida. Ele precisa internalizar seu sofrimento decorrente da problemática social, para conseguir continuar. Não há nem tempo de parar para chorar, pois essas tristezas são passadas caminhando pela rua. Seu momento de libertação, até comum de filmes dramáticos, na praia, serve apenas para ser mais uma forma de sofrer. Contudo, ali ele respira, por simplesmente poder ultrapassar uma das situações mais complexas de sua existência.
Em Sócrates contemplamos uma busca eterna por uma realidade de mundo. O diretor Alexandre Moratto é totalmente interessando nessa questão para compor não apenas as personas, porém o mundo a volta. Socrates é defensivo com tudo e busca combater a todos em uma proteção pessoal. Nesse sentido, ele luta contra uma realidade muito maior do que tudo e todos. Ele é mais uma vítima de um sistema. Moratto tenta trabalhar nesse conceito para trazer quase um DNA brasileiro. O choro do protagonista olhando para a câmera é apenas seu retrato mais cru. A veracidade está ali nos pequenos detalhes, nas pequenas exclusões. E, obviamente, na força potente e emocional da arte.