Crítica – The Batman
Se todo filme moderno existe já tendo como ponto de partida ser “pós-alguma coisa”, a crítica assumiu a missão de tentar traçar um mapeamento genético de cada obra que vê, identificando a qual ramo da árvore genealógica do Cinema ela pertence. Neste sentido, as impressões iniciais de The Batman já procuram filiá-lo de antemão a alguma ancestralidade. Cinema noir, Martin Scorsese, Roman Polanski, Tim Burton, David Fincher, Christopher Nolan e Todd Phillips são apenas alguns dos citados. Destes, uns são filmes-avôs, outros pais, tios e irmãos, mas de certo que eles se conectam entre si e definitivamente são referências seguidas por Matt Reeves, conscientemente ou não.
Afinal, em gênero, de certo que esta rebootização de Batman é mais do que nunca uma exploração do seu traço detetivesco, que até usa e abusa da narração em off, recurso tão marcante do noir. De igual modo, seu roteiro também dá continuidade a filmes psicologizantes como Taxi Driver (ou seja, Coringa), que se propõem a serem complexos estudos internalizados de protagonistas, ligados às ideias de trauma e problemas sociais. Em termos de estética, faz tão sentido que citem a trilogia de Nolan, já que ainda se está com um pé na ideia de mundo minimamente realista e violento, mas que também citem Burton por Gotham voltar a ser uma personagem viva completamente expressiva como retrato de uma madrugada sempre chuvosa e podre. Contudo, a despeito de tais filiações, o motivo pelo qual The Batman mais chama minha atenção é quando Reeves entra em territórios depalmianos (de Brian De Palma), ou seja, quando se torna um Cinema voyeur.
Portanto, para Reeves, o ato de olhar ganha importância fundamental para se entender o que está sendo contado nas entrelinhas. Assim, é observado como a tecnologia está extremamente impregnada pelo narrativa, principalmente a partir das câmeras biônicas em formato de lente que possuem um papel chave. Alheio ao mundo real e noções de sociabilidade, o filme revela que Bruce Wayne (Robert Pattinson) passa a maior parte de seu tempo na Batcaverna revendo exaustivamente o material que seus olhos captaram durante a noite — e de fato Pattinson incorpora um personagem com insônia que parece não dorme nunca — quase que como vivesse em uma espécie de looping traumático pelos horrores de Gotham. São alguns momentos que o filme revisita nesse olho detetivesco, de modo a enfatizar as obsessões dos personagens pela repetição do olhar: o homem que ele espanca, a fixação com o menino órfão ou a própria imagem de Selina Kyle (Zoë Kravitz) no espelho.
Similarmente, é por este motivo que existe um sentimento de terror latente por toda a sequência da missão de Selina pelo clube, vista pelo olho biônico, principalmente pelo caráter de identificação que ele gera. Nós, espectadores, estamos tendo uma experiência passiva, sem possibilidade de interferência, observando o ponto de vista de uma mulher em um ambiente extremamente inseguro para ela, sofrendo olhares e sob o constante medo do assédio. Aliás, que o próprio personagem de Wayne trate a personagem em toda essa situação, lhe colocando em risco enquanto mantêm uma posição de privilégio, mostra como o cineasta olha para o personagem a partir de um certo tom ambíguo.
Ao longo de toda a narrativa, o olhar de Reeves para Batman é acima de tudo como o de um freak, e nunca como antes nos filmes do morcego se sentiu a impressão de que este é um playboy fantasiado usando de seu privilégio e agindo como uma figura completamente alien(nada)ígena no meio da sociedade. Portanto, quando a direção opta pelo plano subjetivo de Bruce Wayne observando, de binóculos, Selina Kyle se despir, o diretor assume a existência de uma malícia do olhar, tanto do espectador, quanto do próprio protagonista, que vira um stalker ao seguir a personagem. O mesmo pode ser dito quando ele constrói os momentos de “caça-e-caçador” entre o Charada e suas vítimas, a partir de uma antecipação que se constrói dentro da lógica de um voyeur observando suas vítimas. Neste sentido, fica estabelecido o paralelismo do Batman e do Charada como lados opostos de uma mesma moeda. Ora, que Reeves faça um pastiche de Alfred Hitchcock e seu jogo de duplos, na cena em que Batman confunde a figura de Selina com a de uma acompanhante de Falcone, só é mais um ponto a favor desta ideia do personagem como um obcecado.
Seguindo a mesma lógica do medo pelas imagens, se concordamos que a figura construída por Paul Dano é um dos mais aterrorizantes vilões do Batman traduzidos para o cinema, boa parte do temor por este personagem vem da ideia de que sua imagem é mediada de maneira indireta pelas lives que ele faz ao público. Esta visão do personagem a partir de imagens de baixa qualidade, de close-ups tremidos em sua cara, com um quadro limitado de visão, muitas vezes escuros, nos quais apenas se escuta uma voz perturbadora ou se têm uma imagem vaga de um sujeito mascarado, acaba por se tornar um terreno perfeito para que se crie um imaginário de uma figura muito mais perturbadora do que ele realmente é. Logo, a jornada do Charada também sedimenta esta ideia de que o que verdadeiramente perturba no filme é menos a realidade direta, mas sim as imagens produzidas por ela.
Daí, desdobra-se um aspecto crucial da narrativa: The Batman é principalmente sobre identidade pública e de que forma o vigilante é visto pela sociedade. Como o próprio Batman se vê como um monstro quando se observa e que o Charada seja um louco inspirado em sua imagem vigilante, fazendo vídeos para o público, a trama progride neste sentido de desconstrução da sua ideia como representante do medo e da violência, para se tornar símbolo de um herói. Toda esta ideia do medo é estabelecida na sequência de introdução, em que o símbolo do morcego no céu se torna um verdadeiro sentimento onisciente de medo pela cidade e Matt Reeves irá insistir neste símbolo pelo filme. Por isso, ao fim, aquelas imagens de televisão na quais ele ajuda os sobreviventes da enchente ajudam a fechar a superação deste arco narrativo do personagem. Inclusive, toda a jornada de Bruce Wayne reverbera neste lado da desconstrução da figura pública de seus pais, com o próprio momento da revelação se dando a partir de um vídeo exibido em um projetor. Se tratando de um personagem tão alienado, é preciso literalmente ver para crer.
Além disso, como tudo no filme é bem amarrado neste sentido, a “confrontação” entre Batman e Charada em Arkham também se dá pela via da identificação do olhar. Não se trata aqui o falso-espelho de Paris, Texas, mas enquanto Charada olha para o outro lado do vidro esperando encontrar um espelho de si mesmo (o personagem idolatra o Batman), Batman por outro lado vê um completo freak que em nada se identifica. No entanto, ao fim do encontro surge uma verdadeira transformação do olhar para ambos, uma vez que Charada percebe que a verdadeira imagem de seu “ídolo” era muito diferente daquela que ele imaginava, assim como Bruce finalmente identifica quem são as pessoas que espelham na imagem que ele construiu com seu Batman.