Crítica – Titane

Nas suas primeiras cenas, Titane traz elementos que serão fundamentais na construção futura: a tecnologia eletrônica, a humanidade e, especialmente, a relação com a morte. A primeira sequência, por exemplo, mostra um acidente de carro acontecendo por conta de uma conversa ríspida familiar. Um pouco mais à frente, temos um grande show de carros em que somos apresentados a grande estrela: Alexia (Agathe Rousselle). Nesse momento, os três elementos citados anteriormente se convergem, ao vermos um momento de, praticamente, sexo entre a protagonista com um carro. Para, em seguida, matar um homem que se diz apaixonado por ela.

Essas questões são fundamentais para eclodir toda a discussão que , responsável por Raw, vai trazendo no desenvolvimento do longa. Mas a história, em relação a isso, acaba sendo algo que vai aparecendo de forma mais destacada no decorrer dos minutos. Anteriormente, somos apresentados uma trama bem simples, em que uma série de mortes é investigada pela polícia local. Ao mesmo tempo disso tudo, uma pessoa desaparecida há 10 anos retorna aos braços do pai. E essa pessoa é justamente Alexia, fingindo ser um homem, correndo contra o encarceramento pelas mortes.

É algo claro como a cineasta terá muito mais interesse na sua projeção sobre esses corpos que vão se fundamentando ao longo do tempo. E isso vai acontecendo em diversas camadas e formas diferentes, passando desde a maneira como cada um dos assassinatos irão acontecer (com uma forte influência de um cinema mais exploitation e até da onda extrema francesa), até mesmo da maneira como cada um dos personagens vão se conectar com a proposição tecnológica que o filme está interessado. Desse jeito, por exemplo, o lado carnal por parte de Alexia em Titane é muito mais interligado com o mundo eletrônico – representado pelo carro -, do que propriamente com as pessoas de carne e osso.

Nesse sentido, é até interessante também perceber as referências de David Cronenberg, especialmente em Crash – Estranhos Prazeres, obra que também vai trabalhar a questão sexual com carros. Mas se o cineasta americano busca bem mais um apelo de transformação dos próprios corpos e um lado sobre a libido humana no meio disso tudo, é curioso como a diretora francesa observa isso de um quesito mais atmosférico, atrás da incorporação humana sobre a tecnologia. Desse jeito, podemos observar como a narrativa vai olhar em um caráter menos do “esquisito” e bem mais de uma forma apelativa.

Isso aparece de um jeito mais direto ao longo do desenvolvimento dos acontecimentos, especialmente na forma como Alexia irá se relacionar com a figura de Vicent, o pai (interpretado por Vincent Lindon). Esses momentos, que trazem bem menos uma ternura, se relacionam no debate sobre incorporação dito antes. Assim, eles se apresentam, por exemplo, na maneira como a conexão dos dois tem um caráter bem mais sexual do que propriamente amoroso, fraterno. Isso se implementa pela grande revelação sobre a personagem por si só e na forma como ela vai esconder o corpo. Ou seja, é o filme debatendo, a todo momento, sobre quem verdadeiramente essas personas são por si só. Elas estão verdadeiramente vivas ou apenas se construindo pelo estigma social? Isso aparece de maneira bem clara na última cena.

 está longe de querer ser simplista na maneira que trata seus personagens em Titane. É um longa curioso, a todo momento, em quase reconstruir a ideia de humanismo. Mas, acima de tudo, ele abraça o transumanismo no mundo contemporâneo sobre algo de uma vigilância eterna. A que momento nós deixamos verdadeiramente de ser humanos e passamos a nos tornar apenas funções na engrenagem no uso do próprio corpo? São poucas respostas que aparecem aqui, mas a cineasta quer instaurar um debate. Nesse sentido, se já falamos bastante sobre as referências aqui, talvez a que mais se aproxime com a discussão presente seja Tetsuo – O Homem de Ferro. Mas, atualizando o feito por Shinya Tsukamoto em 1989, é como se a humanidade tivesse perdido até mesmo o próprio corpo eletrônico.

Esse texto faz parte da nossa cobertura da Mostra de São Paulo 2021

Comentários

Cláudio Gabriel

É apaixonado por cinema, séries, música, quadrinhos e qualquer elemento da cultura pop que o faça feliz. Seu maior sonho é ver o Senta Aí sendo reconhecido... e acha que isso está mais próximo do que se espera.

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