Eles: Os limites do trauma como recurso narrativo

No horror, a sutileza pode ser bem-vinda ou dispensável.

Tudo depende da abordagem e da história a ser contada. Nos últimos anos, os lançamentos do gênero que chamaram mais atenção foram justamente aqueles com comentários sociais mais explícitos – já que inserir esse tipo de contexto em filmes de terror não é uma raridade. Corra! talvez seja o melhor exemplo deste tipo de produção. O mais novo filho da ninhada é a série Elesdo Prime Video, criada por Little Marvin e com produção de Lena Waithe.

A primeira temporada do seriado antológico, com o subtítulo “Covenant”, ou pacto em português livre, segue a mudança de uma família negra da Carolina do Norte para um subúrbio californiano em 1953. Deixando para trás as leis segregacionistas de Jim Crow e outras memórias traumáticas, os Emory chegam em Comptom em busca de uma vida melhor, com mais oportunidades. Porém, essa ilusão é abandonada logo nos primeiros dias: a nova vizinhança, inteiramente branca, não é nada acolhedora. Além disso, o novo lar também manifesta ameaças tão perigosas quanto as do lado de fora.

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Apesar de ter sido criada e roteirizada por um homem negro, os conflitos sociais apresentados em Eles apresentam pouquíssima sensibilidade e eloquência, o que acaba nublando o ponto principal: qual história está sendo contada? A sinopse inicial parece misturar a velha casa assombrada que rejeita os novos inquilinos, com sustos e aparições fantasmagóricas trazendo um lado violento e cruel do “Sonho Americano”. Embora essa união não seja exatamente inovadora em 2021, ainda existe um potencial imenso nessa premissa. Conforme os episódios avançam, no entanto, essa fusão nunca é feita de maneira orgânica ou interessante, mas gráfica e gratuita.

As figuras principais do seriado são expostas à crueldade, injustiça e violência desde o prólogo. Porém, o tempo passa, a trama se desenrola… e o sofrimento continua. Há pouco ou nenhum espaço para que conheçamos esses personagens além das cicatrizes que eles carregam, criadas no passado ou bem na nossa frente. O trauma faz parte da experiência negra, ainda mais em uma trama de horror e de época, mas não a compõe inteiramente.

Um dos trabalhos fundamentais para o debate racial no Brasil é o da filósofa Sueli Carneiro. Sua tese sobre a construção do Outro (do negro) como Não-ser, como o eterno “outro” é algo que pode ser espelhado na vivência negra norte-americana. O preto é negado de sua humanidade, de identidade, de construção. E contar essas histórias baseando-se no choque do sofrimento e não na jornada de um personagem negro é reforçar mais ainda essa construção. Deveria haver algo mais consistente numa crítica ao racismo do que puramente corpos negros sendo  vítimas de diferentes tipos de violência, seja física, psicológica, social ou do além.

O ponto de partida da série é a fuga dessa família de um estado onde o racismo invadia suas casas, assassinava seus entes queridos: um racismo que questiona sua humanidade. Ele ainda existe na Califórnia, no entanto machuca de jeitos diferentes. Essa diferença é bem pontuada em alguns momentos, como quando Ruby começa a frequentar uma escola majoritariamente branca e os diálogos que Henry tem (ou suporta) no ambiente de trabalho. Não são cenas sutis, mas também não parecem perguntar ao telespectador qual é o nível máximo de desconforto e angústia que se poderia ter assistindo alguma coisa.

Alison Pill | EW.com

Em Eles, a epítome desse elemento está na Betty de Allison Pill. Betty é uma espécie de “abelha-rainha” da vizinhança, comandando todas as graciosas esposas com um sorriso de orelha a orelha, gestos delicados e um punho de ferro. O destino dos Emory estava selado no momento que a loura os viu saindo do carro: ela não poderia odiá-los mais e fazer com que eles saiam dali, correndo, em estado de puro terror, torna-se sua maior missão e dever, como esposa e como cidadã. Este cenário, no entanto, não é um exagero requerido pela narrativa: não é difícil imaginar quantas tipos de Betty perturbaram famílias negras durante aquele período. A questão é que não há um comentário mais astuto sobre isso. E quando os roteiristas decidem aprofundar o passado da personagem, seu preconceito é colocado como monstruoso não pela falta de humanidade nas ações causadas por ele, mas por um alinhamento fantasmagórico, sobrenatural. É um alinhamento que, se fosse feito com mais cuidado, tornaria a produção mais coesa.

Até os últimos capítulos, a assombração na casa e todas as ameaças concretas e reais que rondam a família não parecem ter nenhuma conexão. Cada membro tem seu próprio espectro e seus momentos de susto e de agonia, mas esses momentos não acrescentam em nada ao verdadeiro foco da história. São bons exercícios de tensão, com cenas bem filmadas e uma trilha sonora que casa com o que está sendo visto, só que sem apresentar nenhum valor narrativo além disso.

No fim de seus dez episódios, Eles realmente traz uma reflexão: por que estou vendo isso? Há um grande valor na produção. Entre eles, estão a reconstrução de época através dos cenários e figurinos é muito bem feita, destacada pelas cores quentes utilizadas na fotografia que só aumentam o senso de urgência que toda a história investe desde seus primeiros minutos. Todo o elenco é comprometido, mesmo que o roteiro não esteja tão disposto a ajudar. Deborah Ayorinde e Shahadi Wright-Joseph, como a matriarca e a filha adolescente, carregam muitos momentos essenciais. Little Marvin talvez precise lembrar que cenários escuros e figuras sombrias não fazem horror de qualidade, e que reforçar a memória de um terror que ainda assombra a população negra mundo afora, que continua tão perigoso e presente quanto antes (senão mais) se não é puro mau gosto e pobreza criativa, apenas resulta em televisão em que pouco se inova – e muito menos diverte.

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