John Frusciante e a criação que vem de dentro

And then the past recedes
And I won’t be involved
The effort to be free
Seems pointless from above

John Frusciante – The Past Recedes

 

Existe uma cronologia exata para todas as coisas que acontecem em nossas vidas. Tudo o que fazemos, cedo ou tarde, reverbera em uma onda de consequências, para nós e para os outros, e nem todas são agradáveis; algumas, não conseguimos suportar. Se tem uma coisa que eu aprendi ao pesquisar um pouco sobre o “velho novo” guitarrista da banda norte-americana Red Hot Chili Peppers, John Frusciante, é que, como bem diz o título da principal faixa de seu álbum em carreira solo de 2004, Curtains, o passado retrocede. Parece redundante dizer isso, mas se prender muito ao que aconteceu, ao que já foi escrito e já faz parte dessa cronologia episódica que todo mundo guarda consigo, pode ser fatal, ou, nesse caso, quase.

Olhando para os principais pontos da vida do guitarrista, com ou sem a banda pela qual ele ficou famoso, parece que não existe muita válvula de escape. Eu imagino um corredor vazio, cheio de fantasmas, em um quarto escuro. E solidão. Muita solidão. Parece fácil ir e vir por aí, entrar e sair da própria arte, permanecer sem ficar e assim vagar como um espírito, mas isso exige muita reflexão. É uma escolha, como todas as tomadas de atitude são, porque envolvem decisões, e decidir fazer (ou deixar de fazer) algo não é simples: a vontade não surge no meio da noite. Em outras palavras, eu vejo em John um quê de melancolia, quase inerente à sua personalidade, se não indissociável dela. E a melancolia existe porque existem traumas, e existem frustrações. Lendo e vendo entrevistas antigas, sejam registros caseiros (muitos deles gravados por Flea, amigo pessoal dele e baixista do Red Hot desde sempre) ou perguntas feitas por jornalistas ou mesmo vídeos de fãs, nota-se facilmente que o músico está sempre oscilando. Se o passado é uma marca, e viver é fazer escolhas, ele parece ainda não ter se decidido sobre o que quer, ou sobre como se sente, e não porque não quer ficar de um lado, mas porque todos os caminhos são inconstantes. Talvez o mais certeiro, o único que o dê tranquilidade e aquele pelo qual ele continua apostando sua vontade de viver, é a música.

Os sons que vêm de dentro de uma guitarra podem evitar que alguém atrofie, que os órgãos parem de funcionar e a mente fique estacionada no tempo. Eu nunca compus nenhuma canção e nem toco em uma banda, muito menos me aventurei a lançar e produzir um álbum de estúdio, mas sei que viver de música, dar o sangue para que a arte de se expressar por palavras cantadas entre em ressonância com como você se sente em relação a si mesmo e ao mundo que o cerca, é uma experiência capaz de fazer alguém sem perspectivas de vida permanecer em pé. Na realidade, eu não sabia disso, não tinha muita noção, até ver o quanto John leva isso a sério, principalmente durante seus períodos mais sombrios, quando não havia muita esperança e as drogas estavam por toda a parte, em seu corpo e em sua mente. Seu primeiro álbum solo, Niandra LaDes and Usually Just a T-Shirt, é um experimento. Diversas faixas, se não todas, possuem um clima muito evidente de desespero no ar, uma dor tão grande que só restava gritar e fazer música ao mesmo tempo, ainda que a dor às vezes parecesse tamanha que ele soasse como alguém que não quisesse ser ouvido, que quisesse ser deixado de lado. Bem, no fundo ele queria, mas não sem criar. Sozinho, em seu quarto, que não era nem de longe um estúdio, a possibilidade de transformar o “mundo lá fora” em uma exata réplica dos seus pensamentos obscuros, era a única saída. Para viver, era preciso viver como se vive dentro, como se tudo fosse obra da sua cabeça. Nessa época, entre 1993 e 1994, John se sentia como um adolescente descobrindo a beleza do universo, mas ao invés de passar por isso fazendo coisas estimulantes, ele estava se destruindo, ainda que não soubesse disso. Cheirava cocaína o quanto pudia, e injetava tanta heroína que quase teve que amputar os braços. Seus dentes apodreceram. O que havia de força física tinha se transformado em mantras. John definitivamente se apegava a eles, e nessa época ele dizia ver espíritos que o pediam para permanecer vivo. Talvez seu grito de socorro, seus berros em formas de harmonia, tenham sido ouvido pelos deuses da música, por quem permite que saia de um instrumento musical todas as respostas para todos os problemas. John estava se tornando um desses mitos, alguém que transmite magia pelo som que cria. Ele dizia que se drogar era uma forma de manter contato com a beleza ao invés de deixar a podridão do mundo corromper a alma, mas também disse, em outra ocasião, que nenhum guitarrista soa como nenhum outro, e tocar guitarra é levar ao ouvido das pessoas o som da carne, da pele, da psique, do sistema nervoso dos seres humanos, e dele mesmo. A mesma pessoa que disse a primeira frase disse a segunda, em épocas distintas. A mesma pessoa que se descreveu certa vez como um junkie, que sabotou a apresentação da própria banda e errou de propósito um trecho de uma música só para ficar em paz, também disse que queria viver, e que a música é uma extensão do nosso corpo; do seu, do meu e do dele.

Na cabeça de John Frusciante, a ordem natural das coisas não era para ter sido essa. Muito provavelmente, se alguém não tivesse lhe apresentado para as drogas, se ele não tivesse seguido seus instintos e decidido em 1988 que tocaria na banda que mais amava no mundo, se anos depois não tivesse fechado a porta que abriu ao tocar nos Chili Peppers e, principalmente, se não estivesse vivo, nada disso teria acontecido. Tudo isso a gente conhece, mas o nada é um mistério. Essa jornada ainda sem fim só foi desse jeito porque, mesmo sem querer, John fez escolhas. Toda vez que ele pensa sobre elas, deve querer voltar no tempo, e tudo deve ser no mínimo muito instável pra sustentar, por isso não consegue manter por muito tempo o que diz, ou o que sente. Não sabe se fica ou vai, se expande sua arte na horizontal ou vertical, se toca assim ou assado, se faz música eletrônica, experimental ou se toca numa banda. Mas ao não saber, ele já está sabendo. O tempo passa enquanto isso, e a vida permanece. Ele entra e sai, mas nunca vai.

Não sei o que se passou na cabeça dos outros membros do Red Hot para clamarem por sua volta, não sei nem mesmo se isso foi um acordo entre as partes, mas de alguma forma isso precisava acontecer, como tudo o que (não) ocorreu. Seu lugar ainda é incerto, mas John sem música não é John, e a música também é pouca coisa sem ele. Sem querer, sem nenhuma ambição pessoal ou profissional, apenas querendo tocar e criar, ele chegou a um lugar onde poucos chegam. Presente como unanimidade em várias listas de melhores guitarristas dos últimos anos e destacado no Rock n’ Roll Hall of Fame, deu passos maiores do que o que projetou. Talvez, na época do Niandra só quisesse ficar em paz, e teve que ouvir as vozes de dentro para criar por fora. Por toda a sua carreira, sua mente e o seu corpo estiveram em comunhão, e agora não é diferente. Com mais experiência e força de vontade, parece mais estável do que nunca. Sua arte amadureceu e, como um artista solo, ele nunca foi tão eclético, mesmo que para isso tenha causado revolta em vários fãs mais puristas, mas nada disso mais importa. Chega de se apegar ao passado, John. Tem uma banda e uma legião esperando por você, desde que você ouça as vozes certas.

Comentários

Pedro Daher

Tenho tantas ideias quanto cabelo na minha cabeça, e dizem, e eu concordo com quem diz, que gosto de transportar o que se passa em minha mente inquieta para o papel físico ou para o texto reproduzido na tela do computador. Entre minhas principais paixões estão vários elementos que compõem a cultura pop, como a música e o cinema, em suas mais diversas formas, e a escrita que traduz em sentimento esses interesses.

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