Crítica – Três Verões

Em 2019, a questão de classe ganhou forte evidência nas salas de cinema de todo mundo. Filmes como Parasita, Bacurau e Coringa trataram dessa divisão da sociedade dos mais diversos modos. Três Verões, de Sandra Kogut, é mais uma dessas obras que busca entender as dinâmicas que envolvem a relação entre as classes mais ricas e pobres, porém parece ter ficado um tanto perdida na hora de representar um desses lados na tela.

O longa parte de uma ideia muito perspicaz: o que acontece com os empregados de uma família rica que entrou em desgraça? É nessa situação que Madá (Regina Casé), caseira da família Lira, e seus colegas de trabalho se encontram após seu patrão, Edgar (Otavio Muller) ser preso e ter seus bens apreendidos. Para piorar a situação, Edgar ainda usou a obra do quiosque de Madá, sonho da personagem, no esquema de corrupção. Todas atividades da protagonista envolviam seu chefe, o que fazer agora que ele se foi?

Como o título indica, a produção é dividida em três segmentos, cada uma retratando o mês de dezembro por três anos seguidos. A primeira é importante para estabelecer a relação de Madá com seus patrões, e funcionaria muito bem, se não por um importante erro na construção da personagem: Madá é engraçada o tempo todo. O papel é muito similar o de Casé em Que Horas Ela Volta?Mas, se no filme de Anna Muylaert, a empregada era retratada com carinho e complexidade, Kogut decide se encostar na imagem do “pobre alegre ingênuo”, e acaba tornando a personagem que deveria ser nosso ponto de empatia em chacota.

O problema não é atuação de Casé, que está super confortável no papel, e quando o tom da personagem combina com o da história, é genuinamente divertido de se ver. Um desses exemplos é no segundo segmento, onde os empregados se apropriam das posses dos patrões para seu próprio benefício, criando até mesmo um tour usando a lancha abandonada da família. Mas como reagir quando somos convidados a rir das esperanças da personagem com seu empreendimento no quiosque? Em certo ponto, até mesmo o seu jeito de andar é objeto de riso. Todos os personagens pobres do filme recebem o mesmo tratamento. Parece que Kogut não acompanhou as discussões que acompanharam filmes como Roma, por exemplo, na questão da representação de pessoas marginalizadas.

Essa construção humorística acaba colocando para baixo a grande cena emocional do longa, quando Kogut, após tratar tudo relacionado a Madá como piada, pede que  nos importemos com ela e com seu passado dramático. Esteticamente a cena soa bastante funcional, com todo o destaque sendo dado ao monologo de Casé. Entretanto, como se importar se aquela dimensão da personagem nunca foi fator até aquele momento na história? Não há como em um momento sermos convidados a rir dos sonhos de Madá, para no outro chorarmos ao lado dela, sendo que ela nunca foi tratada com empatia.

Três Verões é mais retrógrado, ao seu modo, do que Boca de Ouro, uma produção abertamente machista. Na obra de Daniel Filho, ao menos, não há ilusões sobre o que está sendo representado, já o filme de Sandra Kogut apresenta um olhar falsamente simpático, somente para colocar a figura do outro marginalizado como boba e infantil, até que seja dramaticamente conveniente não fazê-lo.

Esse texto faz parte da nossa cobertura do Festival do Rio 2019

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