O pessimismo alegre de Chico Buarque

O primeiro desejo de um resenhista de um romance de Chico Buarque é de pronto relacioná-lo com sua vasta produção musical. É, de certo, um ímpeto justo, haja vista o teor narrativo das letras de Chico. Porém, como o mesmo diz, o compositor não tem muito a ver com o romancista (o qual ele julga gostar mais). Tentarei, então, não cair no lugar comum da associação fácil para falar do caçula da produção literária do escritor Chico Buarque, o livro Essa Gente. Não é demais dizer que o livro foi o primeiro a ser lançado depois do artista ganhar o Prêmio Camões e, por conta dele, se envolver na polêmica com Jair Bolsonaro sobre a não assinatura do prêmio ao que respondeu que seria “um segundo prêmio”.

Dentro da obra, lançada em novembro desse ano, temos um romance que mistura diários, cartas, sonhos, telefonemas, intimação judicial, bilhetes e outros tantos meios possíveis para se contar uma história. A história retrata o cotidiano do escritor Manuel Duarte, na qual fez bastante sucesso com o livro “Eunuco do Paço Real” e que agora vive entre um bloqueio criativo o impedindo de escrever seu novo trabalho, acarretando em uma crise financeira que o atormenta. Muitos apontaram familiaridades entre o personagem e seu autor: além do nome soar parecido (Duarte, Buarque), os dois quase morreram em um afogamento e ambos tem a mania de caminhar pelo Leblon para concatenar melhor as ideias. Então, fica o aviso: se você tem o costume de andar por lá você poderá esbarrar com o Buarque (ou seria com o Duarte?).

O livro vai fornecendo, de forma fragmentada (os “mini-capítulos” se iniciam com datas não necessariamente em ordem cronológica), um panorama de personagens e situações que ocorrem num Rio de Janeiro, esse que também vira personagem: a dupla Leblon-Vidigal se exibe com vigor durante boa parte do livro. As paixões de Duarte vão se apresentando com uma forte expressividade – como se elas representassem situações e perspectivas de nosso tempo. Sua ex-mulher, Maria Clara, com quem tem um filho e com quem Duarte volta a se encontrar depois de um tempo, luta contra uma depressão e vai para Portugal; sua outra ex-mulher, Rosane, com quem ainda tem relações casuais e divergências políticas; por fim, Rebekka, uma holandesa que vem ao Brasil após ouvir “Manhã de Carnaval” para encontrar seu Orfeu que, por acaso, é o salva vidas que salva Duarte de afogamento. O panorama social está exposto pelo mosaico dos amores (e desamores) de Duarte.

Porém, nem só de amores vive o autor. Duarte passa por situações que o fazem perceber a mudança pela qual passaram as pessoas do seu círculo social, a zona sul carioca. Fúlvio, um advogado de respeito, não se envergonha ao espancar um morador de rua,; Rosane, sua ex-mulher, agora tem uma estátua de ouro de um homem com uma faixa presidencial em sua sala. Duarte, depois de acordar de um pesadelo, se dá conta de que “por decreto presidencial, posso ter quatro armas de fogo em casa”. Ou ao abrir o jornal e ler que um músico negro levou, em seu carro, oitenta tiros. Por fim, quando Duarte anda com o revólver a mostra na rua, é saudado pelos transeuntes. Isso sem falar da presença das igrejas evangélicas nas favelas, colocado pela relação de Rebekka com a igreja. Os exemplos são vários, mas todos eles dão conta do olhar de Duarte frente a desagregação social desse microcosmos de país. O estranhamento do autor a isso tudo talvez seja o móvel do livro e que fornece a pergunta que lhe dá o título: quem é essa gente? O mosaico de personagens e situações de um Brasil fragmentado e que deixou seu passado idealizado para trás (a citação de Orfeu Negro não é por acaso) é, para mim, o ponto alto do livro e é bem realizado quando aparece ao longo das páginas.

Apesar disso, Essa Gente talvez não figure nas grandes realizações em prosa de Chico Buarque. O livro está longe das experimentações de linguagem de Estorvo (1991) e Budapeste (2003), por exemplo, e longe também do impulso machadiano bem realizado em Leite Derramado (2009). O título, porém, tem a grande valia de ser um dos primeiros (ou o primeiro?) a tratar de nosso tempo presente. A produção carrega um tom negativo, de encruzilhada e de pessimismo mas que, ao mesmo tempo, nos faz rir – eis o tal pessimismo alegre que Caetano Veloso sempre nos fala? Rir quando cotidiano nos esmaga talvez seja a grande lição do livro do Chico. Mas e o pessimismo? Será que o Brasil terá o mesmo fim que Manuel Duarte? Chico não nos dá essa resposta, mas parafraseando um samba seu, ele fez um livro bem pra frente, dizendo realmente o que que ele acha.

Não cumpri minha promessa. O Chico letrista se impôs mais uma vez.

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