O terror como construção de identidade em Mal Nosso
Ao observarmos o jeito que Arthur (Ademir Esteves) acorda e anda pela casa, seu jeito sereno e tranquilo passa um sentido totalmente diferente do que será visto pela frente. Seu sentimento e sua calma são buscadas pela câmera nos olhares, nas mãos, na maneira de andar. Quando o personagem resolve acessar a internet, está a procura de um matador de aluguel, encontrando assim Charles (Ricardo Casella), afim de controlar um espírito demoníaco de possuir sua filha, Michelle (Luana Pepita). Visualizando o jeito de ação do matador, vemos apenas os olhos desse homem, sua porta de entrada. Sem diálogos, assim, se começa a entender sobre a identidade desse sujeito e como o terror se constrói na sua vida.
Mal Nosso parte de uma encenação pautada em momentos. A construção da relação dos personagens e o fim da história, parecem pequenos perante aos curtos espaços de tempo que geram esse DNA do medo dentro da narrativa. Inicialmente, o drama se estabelece de forma quase ensurdecedora, abrindo caminhos para o slasher se apresentar dentro da persona de Charles. O diretor e roteirista Samuel Galli, inclusive, abusa disso ao estabelecer uma certa estilização em toda a sequência do bar, com o uso do vermelho muito forte e uma conversa antes da cachina pautada em um gigantesco estabelecimento dos esteriótipos do casal de lésbicas. A partir daí, o psicológico, o gore, o demoníaco e até os jump scares tomam vez. Esses elementos se tornam relevantes para entender a maneira que a temática da obra se influência nesse meio termo. O horror é uma identidade formada por diversos gêneros, assim como a vida do protagonista, marcada por esse mesmo pavor.
Quando se finaliza o primeiro arco, o espaço é dado para o desenvolvimento de Arthur e sua história quando criança e mais velho através de flashbacks propostos a estabelecer o desespero dentro da psique. Esse fator até se torna significativo para observar como as relações familiares também iriam acabar acontecendo nesse sentido (o grande catalizador do ponto de virada da trama). Aliás, há também uma clara referência em esconder esses elementos do público, sem nunca deixar claro a forma na qual essas questões irão aparecer. Dessa maneira, existe uma lembrança mais direta para Sangue de Pantera (1942) e O Bebê de Rosemary (1968) ao abordar esse medo não de forma direta, mas sim como parte da construção desse universo.
Apesar de possuir uma estrutura sempre interessada propriamente em uma formulação meio aleatória para pautar a narrativa, existe uma perda ao fragmentar tanto o longa assim. As partes em si são bastante funcionais, porém passa a não ser bem um uso do horror por ele mesmo. Existe até uma certa confusão no andar dos fatos, como a parte do meio da produção, com a menina morta, e a constante aparição filosófica, remetendo até a Frederico Fellini, do palhaço (Antony Mello), quase uma espécie de conselheiro do personagem principal. Entretanto, ele aparece bem mais a abrir espaços aos elementos lúdicos na própria história do que realmente uma adição a toda encenação. O interesse na pizza como uma forma de explanar a carne humana – algo ainda reforçado pela cena da mulher comendo sua carne – parecem ser muito mais honestos com a trama do que a ideia desconjuntada da montagem.
Mal Nosso busca explorar uma construção da identidade na história de Arthur pelo terror. A relação com sua família, gerando ao conceito do “nosso”, parece ser um DNA pautado por propriamente viver sob medo. As mortes dentro do filme, assim, pautam como todo esse ideal faz parte do dia desses personagens, de diferentes formas e maneiras. O gênero assim, se extrapola mais do que simplesmente uma maneira de ser da trama, se tornando uma composição da vida do sujeito. O mal parece não vir apenas de indivíduos, mas de algo mais coletivo. Será que não teremos ele em nós mesmos também?