Resenha – O Alcazar (HQ)

Um dos elementos mais fundamentais dos quadrinhos é saber contar histórias com uma grande confusão e poucas certezas sobre o espaço-tempo. Talvez essa seja uma questão que já foi usada e abusada para dentro da ficção-científica e da fantasia, porém, de tempos em tempos, é feita de forma primorosa dentro do mundo de produções mais dramáticas. Além disso, como destaca Barbara Postema em Estrutura Narrativa dos Quadrinhos, “as imagens de quadrinhos com frequência trazem elementos pictóricos que desempenham funções de inúmeros códigos diferentes de uma vez e ao mesmo tempo”. Para ela, esses elementos vão ter significados múltiplos e simultâneos. E isso está presente de forma onipresente em O Alcazar, de Simon Lamouret, lançado no Brasil pela editora Nemo.

Na história, acompanhamos apenas um local, assim como HQs como Aqui, de Richard McGuire. Só que esse ambiente é um canteiro de obras no meio da Índia contemporânea. Por lá, acompanhamos diversos operários e outras pessoas importantes dessa construção, como Ali, um engenheiro jovem; Trinna, um capataz totalmente insensível; Rafik, Mehboob e Salma, que trabalham dentro do edifício. Assim, ao mesmo tempo que acompanhamos a solidificação desse lugar, também vemos as mudanças e crescimentos na cabeça de cada um desses personagens.

Lamouret tem uma verdadeira fixação e nenhum medo de construir um elemento estético dentro da narrativa sobre esse microcosmo que vai se fundamentar ali. Assim, vamos desenvolvendo uma certa relação complexa com pequenas questões dos protagonistas, como o sonho de conseguir se tornar um chefe de obras, até mesmo de apenas sair desse local. E isso tudo permeado por uma complexa visão sobre a Índia dos tempos atuais, com seus diversos problemas e diferenças religiosas, linguísticas e, até mesmo, de castas. Por exemplo, a passagem de um pai com o filho ao lado do canteiro pode ser extremamente tensa nessa concepção.

Mas O Alcazar não é um quadrinho que se volta apenas a ser um grande drama de sofrimento e dá espaço para uma comicidade que está sempre atrelada a tragédia desse ambiente. Dessa forma, por exemplo, a relação do casal passa desde momentos de uma maior afeição e de piadas internas e também chega no caminho da frustração de nunca conseguirem nada melhor que a vida que acabaram tendo. Do mesmo jeito, o grande chefe, filho da família dona do local, parece ter mais interesse em agradar o pai e aceita sempre ideias estapafúrdias de clientes interessados em comprar um imóvel na residência.

Aliás, esse ambiente por si só já tem uma grande alma própria que a HQ dá espaço a todo instante. São diversas as cenas que, para marcar a passagem do tempo, deixam apenas grandes planos abertos para vermos o andamento da obra, ou até mesmo quando vemos de forma mais profunda a construção de algum mínimo lugar. Tudo isso se mostra relevante para contrastar que, apesar de vermos trabalhadores pobres ali, que lutam para conseguir o sustento até morando na construção, é também sabido que essse prédio será para pessoas de maior poder aquisitivo. É essa talvez a maior demonstração da grande diferença de classes que a obra está interessada em trabalhar.

Simon Lamouret parece nem ligar muito para os efeitos que a narrativa vai criar, indo atrás de uma formalidade dessa história e de como tudo vai acabar. Pouco importa, por exemplo, uma cena de celebração de um membro do nascimento do filho de um membro da família de um dos trabalhadores da obra. É muito mais importante o que isso tudo está relacionado dentro desse conceito da edificação. Assim, os sonhos dos protagonistas parecem sempre atrelados ao erro, à falha, a pouca possibilidade de conseguir. Isso se encontra muito presente dentro do objetivo de vida de Salma de ter uma TV. E, quando isso acontece, ela não ser nem perto do ideal.

É sempre a partir disso que O Alcazar vai se fundamentando. Não é uma produção que busca olhar e se agradar propriamente no drama desses personagens e parece bem mais interessadas nas pequenas relações que vão se desenvolvendo pela trama. É isso que vai tornar ela tão boa, divertida e, ao mesmo tempo, extremamente pesada. Longe de ser simples, Simon Lamouret consegue solidificar uma profunda conexão do leitor com esse mundo, a ponto dele nunca sair dentro da cabeça de todos que leem.

Comentários

Cláudio Gabriel

É apaixonado por cinema, séries, música, quadrinhos e qualquer elemento da cultura pop que o faça feliz. Seu maior sonho é ver o Senta Aí sendo reconhecido... e acha que isso está mais próximo do que se espera.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *