Resenha – O Estranho Caso do Cachorro Morto (Mark Haddon)

Como olhar o mundo sob uma nova perspectiva? Essa é uma das perguntas que a literatura acaba frequentemente trazendo. Até porque, em grande parte das histórias, acompanhamos vidas e narrativas com um novo olhar, muitas vezes que poderíamos nem ter imaginado que teríamos chance uma vez na vida. Um desses olhares pouco explorados pelos livros desde sempre é de pessoas autistas, seja em um grau maior ou menor. Síndromes do tipo causam intensa dificuldade de interação social e, da mesma forma, em criar complicadas condições de vida, especialmente quando se é mais jovem. Entretanto, a vida desses é natural, como qualquer outra, e com desafios também únicos.

Com isso em mente, Mark Haddon escreveu em 2003 O Estranho Caso do Cachorro Morto. A obra, relançada agora no Brasil pela editora Record, traz uma perspectiva bem direta do personagem principal. Ele é Christopher, um menino autista de 15 anos que vive com seu pai e estuda em um colégio destinado especialmente para crianças com transtornos similares. No local, em que ele faz diversos amigos, é também um ambiente capaz de muitos aprendizados, até porque o adolescente é extremamente inteligente e se prepara para fazer um exame de Matemática Avançada. Contudo, as coisas mudam na sua vida quando, certo dia, ele vê o cachorro de sua vizinha morto. Assim, passa a fazer uma investigação para tentar descobrir quem o matou e também os motivos para o crime.

Haddon tem um trabalho bem claro em colocar a narrativa toda sob o olhar desse jovem. É ele quem está “escrevendo” o livro que estamos lendo, ao mesmo tempo que também coloca várias indagações a serem respondidas, e pensamentos aleatórios. A história é inteiramente dele. É como se estivessemos acompanhando sua cabeça, em uma escrita que sempre tenta brincar e tornar séria a perspectiva de mundo dele. Um exemplo é quando ele encontra uma pessoa desconhecida na rua e seu primeiro pensamento é que não deveria entrar em contato com ela. Do mesmo jeito, age com impulso contra um policial que vai abordá-lo após a morte do cachorro.

Esses elementos sempre vão se sobrepondo, fazendo com que a história de O Estranho Caso do Cachorro Morto tenha um caráter bem dúbio. Enquanto, por um lado, trata de uma tentativa de um adolescente autista em entender o que está acontecendo com sua vida, seu passado e tudo que foi renegado dele, não deixa de ser uma trama de investigação, já que o menino sempre descobre elementos novos e se encontra em circunstâncias tensas. A própria escrita de Haddon coloca isso bem de frente, ao trazer elementos de suspense – especialmente no momento do trem e do andar em Londres.

Outra coisa que se destaca é a divisão de cada um dos capítulos – feita sempre em números primos. Em um deles, a história avança, conhecemos mais personagens e somos colocados com novos olhares. Nenhuma página é colocada fora e sempre funcionam para avançar a narrativa. No capítulo seguinte, vemos alguma elocubração de Christopher, como um pensamento sobre a ideia de viagem de férias ou até mesmo a explicação de alguma conta matemática. Pode parecer estranho inicialmente, mas é o jeito como o autor tenta colocar o público como uma pessoa que está vendo tudo no olhar desse personagem. E ele é alguém que é dessa forma.

O Estranho Caso do Cachorro Morto consegue ser um livro extremamente complexo em um olhar bem adolescente para os acontecimentos. Não deixa de ser uma trama jovem, infanto juvenil, porém que não perde toda a visão e entendimento da complexidade dos temas que irá tratar. Talvez, se estivéssemos acompanhando tudo pelos olhos do pai, por exemplo, estaríamos em contato com um drama tenso e triste. Apesar disso, a história está no olhar de um jovem, praticamente uma criança, em busca de compreender a si mesmo e seu passado. E, por isso, é tão forte de se acompanhar.

Comentários

Cláudio Gabriel

É apaixonado por cinema, séries, música, quadrinhos e qualquer elemento da cultura pop que o faça feliz. Seu maior sonho é ver o Senta Aí sendo reconhecido... e acha que isso está mais próximo do que se espera.

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