Richard Linklater e a melancolia do alvorecer

Quem trabalha com narrativas visuais acaba estruturando o mundo em imagens e dando significado a cada uma delas através da expressão artística. Se engana, porém, quem pensa que a arte sequencial, codificada em símbolos imagéticos, é de fácil acesso por estar “pronta” para ser consumida e interpretada. Na realidade, a interpretação da imagem, ou sua leitura, exige tanto quanto ou até mais trabalho do que a decodificação de palavras. A imagem, móvel como no cinema, ou imóvel como na fotografia, carrega consigo enigmas que só são decifrados quando você treina o olhar para fins investigativos, questionando conceitos que instintivamente você jamais questionaria, por não ter aprendido a exercita-los e agrupa-los em camadas interpretativas.

Cada imagem carrega consigo uma história de vida, e cada leitor de imagem, seja ele considerado um espectador, no caso do cinema e do teatro, ou um observador, no caso da fotografia, também tem sua própria narrativa, medida pelo tempo. Tendo uma definição abstrata e de difícil assimilação, o tempo, para fins didáticos, foi decomposto em frações menores, em escalas que o tornassem acessível e digerível. Assim, um filme ou uma série tornam-se mais próximos da vida quando se agrupam em períodos temporais demarcados pela passagem de minutos, horas, dias, semanas, meses e anos. No entanto, no cinema autoral consolidado nas últimas décadas, poucos diretores conseguem abordar o tempo em seu estado primitivo, sem ser decomposto, e sim fluido, como elemento narrativo central para o desenvolvimento da trama, como Richard Linklater.

Passeando por sua filmografia, é muito fácil encontrar pontos de intersecção entre seus principais filmes, que são até difíceis de serem representados numericamente, porque representam ciclos, e ciclos não se fecham. Falo aqui da trilogia composta por Antes do Amanhecer, Antes do Pôr-do-Sol e Antes da Meia-Noite, os filmes complementares Jovens, Loucos e Rebeldes e Jovens, Mais Loucos e Rebeldes e o queridinho da crítica americana, Boyhood. Todos esses filmes possuem uma abordagem narrativa linear, e são estruturados de forma a fazer o espectador se identificar e tomar a história para si, e tudo isso soa muito bonito, mas será que é tão simples assim traduzir um filme de Linklater para sua vivência pessoal? Assim como as imagens e a escrita, que precisam ser decodificadas, seus filmes, por apresentarem personagens não-humanos, também podem ser lidos por vários caminhos, o que não os tornam necessariamente complexos, e sim obras vívidas, inquietas, que fazem perguntas ao espectador na mesma proporção que o espectador faz perguntas a elas.

Curtindo a vida no bar, contemplando a paisagem, observando o fluxo de pessoas ou olhando para o céu: as ações do personagens dos filmes de Linklater mudam, mas o tempo sempre flui continuamente.

Na história de Jesse e Celine, personagens da trilogia romântica mencionada acima, um homem e uma mulher se encontram em um trem e têm uma conexão profunda que se prolonga por 24 horas ininterruptas, até um possível próximo encontro que poderia durar um período de espera qualquer. Essa seria uma leitura denotativa e deveras simplista de um evento (o tempo) que tem início no primeiro segundo do primeiro filme, a partir do primeiro olhar trocado entre o casal, e vai se questionando o tempo todo a respeito da sua função na trama, estando presente metafisicamente em todos os planos, em todos os diálogos e em todas as ações dos personagens. Ou seja, nós não o vemos, mas nós os sentimos e os vivemos, assim como os personagens. Dessa vivência e desse sentimento de pertencimento ao tempo abstrato, nasce algo concreto. Logo, esse incômodo por não saber o que esperar de um elemento estranho torna-se algo natural, tanto para quem participa do enredo tanto quanto para quem o observa de longe.

O tempo passa a se tornar personagem da trama quando ele anda em conjunto com as pessoas de carne e osso do filme. Quando cada pensamento torna-se ação projetada por um dos dois personagens no plano real, quando Jesse e Celine cedem a seus impulsos primitivos e fazem tudo o que dá na telha em uma noite, fatalmente a noite se torna dia, que logo se torna noite novamente, e dessa interação cíclica, o tempo vai criando terreno, e agindo através das frações que o agrupam em unidades de medida, como, por exemplo, os anos, que são as unidades escolhidas por Linklater nesse caso específico. Ao escolher filmar o segundo filme nove anos depois do primeiro e transmitir essa sensação de mudança de época para o cenário do filme, o diretor irrompe as barreiras entre o tempo vivido e o tempo sentido, ambos tornam-se um só.

De forma diferente, mas parecida, Linklater havia feito o mesmo anos atrás com o filme Jovens, Loucos e Rebeldes, que acompanha as mesmas 24 horas na vida de jovens calouros e veteranos passando pelo último dia de aula em uma escola norte-americana. De forma totalmente imersiva, o diretor consegue transfigurar para qualquer expectador as sensações exatas de estar na adolescência e ser um jovem confuso passando por um dia muito feliz, livre de crises existenciais, espinhas e problemas com puberdade, mas preocupado apenas em se divertir com os amigos. Se Linklater filmasse sua história demarcando a passagem do tempo através de uma unidade de medida diferente da que adotou, as horas, talvez não fosse possível que o espectador se apropriasse do tempo sentido (o tempo projetado na tela) e fizesse dele sua própria experiência de vida, refletindo sua trajetória de tempo vivido (o tempo da vida real, do cotidiano). Sendo assim, temos aqui um filme que vibra e anda junto com o tempo real, mas ainda assim trata-se de um recorte de um período, pois são 24 horas condensadas em pouco mais de uma hora e meia de duração.

Essa característica ilusória de seus filmes é assimilada de maneira fácil e é percebida, mas não inteiramente pensada. Quando começamos a mergulhar mais e mais em suas narrativas e nos questionarmos o porquê de tudo acontecer exatamente daquela forma, acabamos associando naturalmente todo aquele cenário aparentemente distante a um exercício de replicação do cotidiano. Da manhã à tarde. Da tarde à noite. Da noite à madrugada. Da vivência de personagens à vivência dos espectadores. Da ficção para a vida real. No fim, a pergunta que fica, ao menos para mim, é: qual a linha tênue entre a representação da vida real por Linklater e a vida real de fato? Talvez a resposta esteja entre as longas horas que as separam, mas só aí mesmo, porque, de resto, seus filmes soam como uma réplica do cotidiano de qualquer pessoa em qualquer situação semelhante às filmadas por ele.

Em Jovens, Loucos e Mais Rebeldes, o diretor modifica o cenário, os atores e as músicas, mas o tema é o mesmo, e é curioso perceber que, nesse longa em específico, o espaço se alia ao tempo como personagem da trama. Os calouros e veteranos de uma escola norte-americana, assim como em seu “antecessor espiritual”, saem em procura de diversão e desapego, mas agora acompanhamos a história em três dias, o que dá condição para que o diretor trabalhe com mais propriedade a questão do espaço enquanto mobilizador de certa liberdade cênica. Em determinado momento curtem a era disco, em outro aproveitam a vida na comunidade country, depois se fantasiam de punks e ainda vão a uma festa do pessoal de artes cênicas. Vários saltos no tempo sem sair da década de 80.

Para irem de um lugar para outro, várias portas são abertas e fechadas, o tempo corrido passa, mas permanecemos na mesma década. A câmera filma tudo o que há direito sem se locomover muito, e nosso olhar é treinado para diferentes situações dentro de uma gama situacional maior (a década de 80) que não se modifica enquanto agente temporal. Dessa forma, os lugares em que os personagens se locomovem para se divertir são portais do tempo, agrupando espectador e personagens em um único denominador comum: novamente um período específico, dilatado por experiências de vida. De tanto explorar a pluralidade do espaço e do tempo, Linklater firma esse filme e seu cinema de uma forma geral em um território desprovido das unidades que os dimensionam.

Em Boyhood, toda essa exploração temporal e a representação de abstrações de forma prática torna-se mais evidente para o público a medida que o filme foi filmado sem intervalos. Se em sua trilogia romântica existia um oceano temporal entre um filme e outro e cabia ao espectador perceber que o que se via em tela corria em paralelo com o que se vivia, em Boyhood não há essa quebra, e a linearidade faz do tempo, talvez, o único personagem da trama, embutido em ações, pensamentos e expressões, acompanhando de cabo a rabo nuances de diferentes vidas e tendo envolvimento direto com o progresso individual de todos os atores, que cresciam e mudavam com o decorrer das filmagens e, de certa forma, apenas performavam no filme, cabendo ao tempo encenar.

O que me chama a atenção, entretanto, é que todos esses filmes analisados possuem brechas em suas narrativas, momentos em que a “melancolia do alvorecer”, nome que dei à passagem específica do tempo durante o amanhecer, toma conta da feição daqueles personagens, e consequentemente de seus pensamentos, de suas práticas e até de suas ambições, uma vez que as obras de Linklater são cíclicas e nunca acabam quando terminam. Como seu cinema é muito direcionado à pluralidade que o tempo pode ter enquanto unidade, à multiplicidade de acontecimentos presentes em um período demarcado, limitado e específico, ao final da projeção, mesmo em seus filmes mais alegres, há sempre um momento em que a inexorabilidade do tempo vai de encontro ao aproveitamento do momento. Na trilogia, por exemplo, esse momento se dá, no primeiro filme, obviamente quando amanhece e os personagens se despedem, mas é engraçado notar que em todos esses filmes existem momentos de despedida, de encerramento, condicionados pela coloração do céu, que simbolicamente representa uma transição, um rito de passagem. Em Jovens, Loucos e Mais Rebeldes, quando Jake e sua namorada estão no lago logo após a festa do pessoal de teatro e dão seus primeiros beijos, há a exemplificação do exato instante em que a ação ganha proporções melancólicas e demarca a transição da vida adolescente para a vida adulta, vista pelo ângulo do primeiro dia de aula e o fim das férias. O plano seguinte já se passa no colégio, no primeiro dia de aula, e o filme logo terminaria, mas aquelas vidas, aqueles personagens, com certeza estão até agora em alguma discoteca ou algum bar oitentista, curtindo a vida, porque o cinema de Linklater é um fluxo contínuo.

Comentários

Pedro Daher

Tenho tantas ideias quanto cabelo na minha cabeça, e dizem, e eu concordo com quem diz, que gosto de transportar o que se passa em minha mente inquieta para o papel físico ou para o texto reproduzido na tela do computador. Entre minhas principais paixões estão vários elementos que compõem a cultura pop, como a música e o cinema, em suas mais diversas formas, e a escrita que traduz em sentimento esses interesses.

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