Crítica – Carro Rei

Em dado momento no início de Carro Rei, Mercedes (Jules Elting) mostra para Zé Macaco (Matheus Nachtergaele) fotos de suas intervenções artísticas ao redor do mundo, marcando estátuas com a palavra em hebraico para morte. Vemos a estátua de Borba Gato, de Franco, Salazar, todos homens e com histórico de crueldade, “esses são símbolos que propagam o poder masculino” diz ela.

O carro como símbolo de masculinidade, e também de autoritarismo, está no cerne da narrativa conduzida pela diretora Renata Pinheiro, que aborda os efeitos de um carro senciente*, o titular Carro Rei (voz de Tavinho Teixeira), em uma pequena cidade nordestina. O veículo vem à existência por meio das habilidades de Uno (Luciano Pedro Jr.), um jovem que possui a capacidade de escutar a voz dos carros, e ao lado de Zé Macaco, seu tio, fazem alterações em um Uno ano 2003, o transformando em um veículo belo, potente, mas também perigoso.

Para isso, o longa adota certo tom de fábula, com o próprio nascimento de Uno sendo inusitado, típico de contos de fadas, sendo embalado em plástico já recém nascido. O Carro Rei é uma presença não só mecânica, mas mística também, afetando coisas – carros tremem com a sua passagem – e pessoas, como aqueles que se envolvem na montagem de mais carros similares, pouco a pouco se tornando mais mecanizados, perdendo sua individualidade por meio de uniformes que trazem as cores do Carro Rei.

Embora Carro Rei não seja um filme sobre urbanismo e com muitas discussões acerca do futuro do transporte, ele agrega muitos dos discursos de grupos ativistas como o planka.nu, grupo sueco que luta por um transporte coletivo e acessível, em seu universo, a própria ideia de um carro autoritário, que tudo pede e tudo quer, limitando a ação humana. Existem também uma relação com as ideias de coletivos similares, que propõem um futuro mais comunal para o transporte, apontando o carro como algo que idealiza o individualismo, mas que simultaneamente retira a individualidade das pessoas, destruindo cidades e tornando a vida humana pior com a sua existência.

Isso se torna mais evidente tendo em vista o grupo que se opõe, de certa forma, ao Carro Rei, um coletivo de agroecologia que tem como seu principal rosto uma mulher, Amora (Clara Pinheiro) se utilizando de veículos mais alternativos, como bicicletas, para lutar contra a dominação do automóvel. Até mesmo o nome de alguns personagens possuem suas conotações com o natural e o artificial, Uno e Mercedes, ambos tem relação com automóveis, enquanto Amora possui conexão evidente com a natureza.

Carro Rei tem uma discussão interessante para levantar, a todo momento se perguntando: que tipo de mundo queremos? Dando corpo de modo muito atrativo a certas questões sobre o futuro do transporte, mesmo que elas sejam mais tangenciais diante de um comentário mais genérico sobre autoritarismo que o filme tenta trazer por meio do seu carro dominador, torna o longa uma produção bem instigante.

Esse texto faz parte da nossa cobertura do Olhar de Cinema 2021

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