Crítica – Tár
Duas frases ditas ao longo das quase três horas de Tár se revelam essenciais para dissecar o filme. A primeira, logo no início, aparece na tela de um celular que grava a protagonista, Lydia Tár (Cate Blanchett) dormindo. “Você ainda a ama?”, pergunta um alguém desconhecido. A resposta nunca vem. A outra, “você deve sublima a si mesmo, seu ego e a sua identidade”, diz a maestrina para um grupo de alunos. Essas questões estabelecem os eixos da narrativa, que concernem muito as relações de Tár com aqueles ao seu redor, e com a sua arte.
Todd Field não perde tempo em estabelecer a personagem como genial, com uma das primeiras sequências do filme sendo uma entrevista, expondo a diversidade de conquistas da compositora. Didatismo? Sim, mas Blanchett compõe uma atuação corporal com tanta maestria que a cena não se torna cansativa. Ela gesticula com a precisão, ilustrando, de certa forma, os conceitos abstratos que discorre em suas falas. O corpo de Tár é importante em diversos momentos, simbolizando tanto sua tremenda força artística – ela por vezes parece uma gigante diante de sua orquestra – quanto sua fragilidade, conforme sua vida começa a degringolar.
Essa genialidade é importante para os dois pontos que citei no parágrafo de abertura. É comum essa característica ser associada ao trato difícil no âmbito social, com pessoas “geniais” tentando impor sua vontade diante dos outros, mas cujo trabalho é de tamanha excelência, que acabamos desconsiderando suas más atitudes. Não que Tár seja explícito em colocar a protagonista na caixa de “artista abusiva”. Não é o caso, há uma lenta construção de simpatia para com a personagem. Vemos a relação com sua parceira, Sharon (Nina Hoss) e com a filha, a quem defende ferozmente em certa cena, tudo em uma luz positiva.
Mas Tár também é, de certa forma, uma mulher assombrada, com algo pesando em sua consciência. A imagem dela, deitada na cama, de olhos arregalados e com expressão dolorida, se repete ao longo do filme, revelando certa inquietação, assim como sequências onde ela persegue sons pelo seu lar. Sua arte, fonte de prazer, nessas horas se torna uma angústia também. De certa forma, o filme de Field se assemelha o Os Fabelmans, por também navegar nessa difícil linha do prazer artístico, que pode tanto ser sublime, como a danação, mas sob a perspectiva de uma figura já consolidada: Mesmo a dor de Sammy na obra de Spielberg carrega uma luz, a sensação de que há algo além disso, já para Lydia Tár, o topo só pode ser seguido de uma queda vertiginosa.
Durante sua derrocada, Tár foge de simpatias fáceis, ou até mesmo de taxar de modo definitivo sua protagonista de monstro ou anjo. A obra se preocupa em expor a situação e coloca em nossas mãos a decisão. A arte da compositora é o bastante para ignorarmos os atos que ela, muito provavelmente, cometeu? Ou deve ela e seus feitos serem relegados ao esquecimento? Separar a arte do artista é uma discussão muito comum, e nem sempre com respostas fáceis. “Você ainda a ama?” é a pergunta que abre o filme, e ao fim, não há como responder sem desconforto, nem negar o fascínio que a personagem exerce ao longo da obra.