Crítica – Rafiki
Em um dos planos iniciais de Rafiki, vemos Kena (Samantha Mugatsia) olhando com um misto de desejo e confusão para a personagem de Ziki (Sheila Munyiva). As duas possuem um receio constante de aproximação demonstrados pela trama, pelo fato de seus pais estarem disputando um cargo político. Nessa espécie de Romeu e Julieta, as duas acabam se descobrindo totalmente apaixonadas uma pela outra, porém sendo obrigadas a esconder essas questões. Em um lugar voltando para as mais diversas relações machistas apresentadas, o lugar demonstra bem o espaço de “encarceramento” com a comunidade LGBT.
Nesse quesito, é bastante envolvente o fato da diretora queniana Wanuri Kahiu colocar Kena, sua protagonista, sempre centralizada nos planos, porém presa às margens que a cercam. A direção de fotografia de Christopher Wessels salienta bastante toda essa prisão retratada desde o início. Aliás, é interessante como o roteiro também apresenta a decorrente problemática dessa minoria marginalizada, pelas agressões constantes de um dos colegas da personagem com um rapaz gay. Em nenhum momento realmente sabemos mais sobre a vida desse homem, contudo apenas o fato de deixar implícita essa situação gera uma consolidação de mundo bastante perturbadora. Esse fato só é corroborado ainda mais nas sequências na igreja, por exemplo, demonstrando de onde estaria vindo esse preconceito.
Wanuri ainda tem um interesse bem diferente ao colocar uma áurea colorida na sua primeira hora, antes do realismo tomar conta da situação. Há um senso bem confuso de uma irrealidade presente na encenação, seja pelos toques das duas personagens (a cena dentro da kombi reflete bem isso), seja por uma espécie de sonho único vivido. A montagem de Isabelle Dedieu reforçam os laços de cada uma, apresentando uma constante troca de olhares. As canções apresentadas nesse instante também trabalham ainda mais todos esses pensamentos, colocando as personagens em um quase mundo paralelo, sempre quebrado por diálogos dos pais e mães de cada uma, como na cena que Ziki é chamada para dentro da casa.
Essa situação bem irreal estética trazia um elemento diferenciador para uma ideia de roteiro bastante simples, todavia belíssima. Quando ocorro a quebra para situações mais realistas e diretas próximo ao fim, representa também uma certa quebra de uma coesão interna apresentada. Obviamente, o objetivo apresentado pela diretora é trabalhar uma realidade totalmente impossível para o relacionamento das duas, porém isso poderia ser apresentado de forma menos direta. O impacto acaba sendo mais gerado pela relação na qual o público cria com ambas do que propriamente um sentido de continuidade. Apesar disso, a cena final retoma esses laços de uma maior pureza e descobrimento, remetendo a áurea sentida por ambas primordialmente.
Com tudo isso é mente, é possível perceber o fato da beleza da narrativa vir muito mais da situação comovente e da personalidade das duas. Kena, especialmente, acaba sendo bastante desenvolvida, com suas contradições – bem complexas quando apresentadas em pequenas circunstâncias – e seus lados propostos, sempre retomando sua situação de descoberta. Já Ziki tem um olhar bem menos pautado na sua vida dentro da cidade do Quênia. A diretora a observa sempre dançando ou revelando uma fuga dessa realidade. Ela busca uma vida fora daquelas situações, adentrando em um mundo diferenciado comum do seu (o cabelo representa bastante nisso). Porém, acaba sempre estando influenciada pelos concretos do cotidiano.
A partir disso, Rafiki tem sua devida importância em observar uma história de amor entre duas mulheres inseridas em um ambiente combativo para ambas. A trama, apesar de salientar um certo desenvolvimento comum, também sabe bem colocar uma sensibilidade onipresente nas pequenas situações, trazendo as personagens para um caminho bastante puro em aproveitarem seu amor. As locações das encenações por parte da diretora Wanuri Kahiu ainda transformam o cotidiano em algo mais pesado e extremamente difícil de fugir. É nessas pequenas questões que acabamos adentrando em uma outra realidade, para buscar a empatia de duas mulheres na qual buscam apenas ficarem juntas.