“As ideias vão puxando as imagens que elas evocam”, conta Felipe Castilho
Durante a XIX Bienal Internacional do Livro, Felipe Castilho teve novamente seu destaque. Ao lançar seu mais novo livro – Serpentário – ele continua na boca dos diversos fãs de literatura fantástica e, agora, horror. Sua trajetória começou a ganhar mais destaque com a série de livros O Legado Folclórico, na qual fez em grande parte da sua vida. Essa buscava reiventar narrativas do folclore nacional em uma roupagem difrenciada, trazendo elementos mais contemporâneos e buscando uma narrativa de gênero colocada ali.
Pois bem, o tempo foi passando e Castilho voltou a ganhar nome quando foi chamado para escrever Ordem Vermelha. A saga, em que só teve o primeiro volume lançado por enquanto, foi uma parceria entre a editora Intrínseca e a CCXP. Esssa obra, lançada ainda durante a Comic Con de 2017, mostrou novidades e possibilidades para o trabalho do autor jamais vistas até então. Ele trabalhou com o fantástico de um jeito mais esquisito e político, algo na qual perdura seu trabalho.
Com tudo isso em mente, o Senta Aí teve a oportunidade de conversar longamente com Felipe sobre seus trabalhos, o legado, Serpentário e a política nacional.
Senta Aí: Você, em pouco tempo, ganhou um certo sucesso dentro do fantástico nacional, na qual já vive um momento muito bom. Como foi essa transformação de passar a publicar sua primeira história até agora com fãs e um respaldo do público e da crítica?
Felipe Castilho: É uma coisa… bem louca, assim. Chegar nos lugares e ter o destaque com gente como eu admiro até hoje. Mas o que bate é uma sensação de dever cumprido, porque se você olhar eu to aí desde 2002 escrevendo. Só que agora estou conseguindo visualização pelo conjunto da obra. Depois de errar e acertar tanto, você começa a saber o que fazer. Acho que desde o Legado Folclórico lá atrás tudo foi mudando, então, cara tá bacana demais e o fato de estar saindo pela Intrínseca é um sonho.
Além disso, acho que me orgulha muito também sair pela Intrínseca diretamente com uma história “menor”. O Ordem Vermelha é algo gigante, envolve guerras, revoluções e tudo mais e o Serpentário é uma história bem mais pessoal, né? Então está sendo legal ver uma história ganhar força, tentando entender ‘será que tem pessoas interessadas nessa história’, e tem. É uma realização, mas também muito esforço e tempo de trabalho para isso.
SA: Dentro das suas histórias tem esse viés relacionado a mitologia. Dentro do Legado Folclórico e do Ordem Vermelha tem bastante e no Serpentário – pelo que pude ler por cima – também tem essa relação. Como e por que você gosta de contar essas histórias relacionadas a mitologia do país?
FC: Naquela parte da primeira infância, eu sempre fui muito apaixonado por mitologias. Aquelas que todo mundo chama como gigante foi a grega, nórdica e tal. E ainda tem o folclore. Eu nunca enxergava assim, sabe? O Saci pra mim, por exemplo, sempre foi algo muito poderoso. A criança quando ela não tem amarras, ela vai sonhando e indo muito além do sonho dela. Com aquela empolgação de criança e contando histórias.
O mito é muito variado né? Até aqui no Brasil, se você ver, de norte a sul, tem as variações das diversas histórias. E varia demais até pelo tamanho do Brasil. Então, se os mitos da Europa ao chegar aqui perdem força, por que os nossos também não podem ter aqui?
Eu quis que o Legado Folclórico trouxesse essa questão do folclore nacional como um orgulho para uma nova molecada [sic] que está surgindo. Porém, muita coisa ali não dava para fazer pelo próprio teor da história. Mas já com o Serpentário eu pude explorar isso mais, até pelo fato de ser mais adulta e isso tudo. Então, muita coisa que eu queria trabalhar, por exemplo, a serpente, que por si só já incorpa muitos símbolos, isso poderia ainda se expandir mais no nosso folclore.
SA: Então é mais pesado, né?
FC: Mais pesado sim, mas a ideia era até trazer algo próprio. Eu até pego algumas histórias de outros mitos para relacionar, mas a ideia sempre foi fazer algo nacional, algo totalmente brasileiro. Uma história brasileira mesmo. No limite do brasileiro, assim, na ponta da faca para os dias atuais.
Principalmente no que andou acontecendo na Bienal [a questão da censura por parte do prefeito Marcelo Crivella], eu percebi que ela ainda estava mais na linha e na questão da realidade. Essa era a minha ideia.
Mas o folclore por si ele já é sombrio, né? As histórias contadas na fogueira, o chinelo virado faz sua mãe morrer, essas histórias causam medo na gente.
SA: Então, como que surgiu essa história na sua cabeça?
FC: Começou quando eu visitei uma ilha que falavam que era a Ilha das Cobras. Eu fui com meu irmão e um amigo. A gente pagou um barqueiro e poderíamos muito bem estar mortos hoje [risos]. E a gente perguntou quando cobrava para levar até a ilha para ele. Ai esse barqueiro falou “70” e eu falei “eu tenho 20”, aí ele “então ta bom” [risadas]. Então fomos para essa ilha que chamavam de ilha das cobras, mas o que chamou a atenção foi que a gente não viu cobras (muitas). E eu vi que a Ilha das Cobras era outra, então eu descobri que existe uma grande desinformação sobre qual é a ilha das cobras. Existe uma no litoral paulista que é a Ilha da Queimada Grande, que os bichos lá evoluíram de uma maneira totalmente diferente. É um fenômeno meio darwinístico dessas serpentes lá.
Essas serpentes elas não tem predador natural e se desenvolveram de um jeito totalmente diferente das outras do continente. Elas pulam muito alto e são ultra-venenosas. Aí eu logo pensei “isso é um cenário de terror”.
Usando essas informações, eu juntei, contei para a editora e eles piraram na ideia, então isso acabou acontecendo muito rápido.
SA: Você possui esse background de quadrinhos. Então, queria perguntar como foi pensada a visualidade nesse livro, já que o horror acaba exigindo muito disso, assim como os quadrinhos?
FC: Eu acho que as ideias vão puxando as imagens que elas evocam. Mesmo não sendo um quadrinho, você vai colocando essas imagens na cabeça do leitor. Então, Serpentário acaba sendo uma história sobre o peso do passado e como essas decisões acabam, ás vezes, ficando muito com a gente. No quadrinho você pode deixar muita coisa subentendida, mas quando fala com o desenhista você tem que abrir o jogo total, não existem amarras.
No Serpentário eu quis fazer um romance para múltiplas interpretações. Eu sempre quis fazer isso desde o início. Eu sempre gostei muito disso, do leitor finalizar a história com base na sua visão e experiência de vida. É difícil ver isso em fantasia, pelo menos, e foi algo que tentei fazer.
SA: Você citou a questão do darwinismo e ainda tem o lado científico muito forte no livro. Como foi todo esse pensamento para a história e qual a importância, para você, de um debate científico nos tempos de ataque a ciência?
FC: Esse viés científico do livro foi logo depois que o Museu Nacional queimou. Aquilo me deixou tão puto [sic]. Aquilo me marcou muito, além do fato das pessoas jogarem a culpa de um para o outro, de quem é a culpa. E a culpa é o reflexo da sociedade que a gente tá agora, cara. Falando que um beijo inocente entre dois caras, tem que ser tirado. Várias coisas mostram que a gente está em uma espécie de mato sem cachorro. Você vendo a política está queimado, literalmente, a Amazônia.
Se isso tudo tivesse acontecido durante a escrita do livro, talvez eu tivesse me inflamado ainda mais. Mas com o Museu Nacional já foi o suficiente para esse debate ser feito na história e eu falo sobre isso bastante na história. E foi a minha coisa de fincar o pé contra o obscurantismo. Não é porque um cara com autoridade que diz que 2 mais 2 é 5, que é verdade, sabe?
SA: Você tem uma posição política muito forte e como você acha que os seus livros tem esse viés seu e também com um pensamento crítico, como forma das pessoas abrirem mais opiniões para outras questões?
FC: O livro sempre é uma visão do autor. Essa questão de não se posicionar politicamente não existe, porque toda vez que você faz isso também está se posicionando politicamente. Não existe apolítica na literatura. Então eu faço que é a coisa de me posicionar sempre. Se alguém quiser ler a história sem pensar nessa camada política, pode ler, mas saiba que eu escrevi com esse viés. Mas também as pessoas enxergam o que elas querem, porque a partir do momento que o livro está no mundo ele é do leitor.
E viver de literatura no Brasil é um ato político. Você não tem respeito, o seu trabalho sendo censurado por mostrar as coisas como elas são, o trabalho de escrita é resistência. As livrarias estão fechando por falta de incentivo, logo as editoras mudam suas formas de se posicionar, e isso não é política?
A primeira coisa que sofre corte quando as coisas estão ruins é a cultura e a educação. Então, sobreviver e fazer literatura nesse lugar é um ato político, simples assim. Então, isso sempre vai ter nas minhas histórias. O fato de eu querer me divertir nesse turbilhão, afinal das contas, também é um ato político.