As obras de M. Night Shyamalan e sua relação com “Do Espiritual na Arte” de Wassily Kandinsky
A Arte tem como ponto de partida formas de se expressar sentimentos seja do autor, seja do público que o mesmo quer atingir, principalmente se tratando de uma obra cinematográfica.
Partindo desse pensamento, foi escolhido o cineasta M. Night Shyamalan, um diretor indiano que divide a opinião do público quando se trata de seu trabalho. O motivo seria de sua ideologia do que seria um filme, de onde ele vem para onde vai. Shyamalan faz o filme para ele, de uma forma que consegue expressar suas questões e isso fica explícito quando se é entendido que os temas mais recorrentes em suas obras tratam sobre fé e religiosidade. Ele induz o espectador para que ambos tenham o mesmo ponto de vista, e talvez isso faça com que o público fique tão dividido. No livro “Do Espiritual na Arte”, de Wassily Kandinsky, isso tem finalidade para que o espectador não se distancie tanto do artista:
“O espectador distancia-se do artista que, numa arte privada de objetivo, recusa-se a ver a finalidade de sua própria vida e tem maiores ambições. Compreender é educar o espectador, induzi-lo a compartilhar o ponto de vista do artista”.
O diretor consegue pôr sua identidade e suas questões mesmo em filmes de grande bilheteria, como por exemplo em “Corpo Fechado”, “Fragmentado” e “Vidro”, que são filmes de heróis. Ele, inclusive, brinca com o fato de que a questões desses heróis tem mais a ver com uma fé em si mesmo do que “salvar o mundo”.
Para analisar essa questão no trabalho, será limitada a três obras suas. Começando por “A Dama na Água”, uma fantasia sobre um homem que salva uma jovem e descobre que, na verdade, ela é uma personagem de um conto infantil: uma ninfa que corre perigo de vida por conta de outra criatura mágica. Ela precisa de ajuda para retornar ao seu mundo, e no decorrer do filme ele e os seus inquilinos descobrem que também são personagens da história e que precisam ajudá-la.
O filme foi basicamente uma história de ninar que o diretor contou para seus filhos, sobre o que acontece em sua piscina quando estão todos dormindo. O interessante que deve ser falado sobre é que tudo acontece porque os humanos param de acreditar no mito, no “conto de fadas”, é como se a fé deles fosse a força necessária para que esse mundo não acabasse em guerras, assim como a fé de uma criança ainda ingênua. Isso se relaciona quando Kandinsky diz que em um dado momento o encanto acaba para a criança, quando ela começa a entender sobre o mundo:
“Sobre uma sensibilidade mediana, os objetos familiares têm uma ação superficial, ao passo que aqueles que vemos pela primeira vez logo produzem em nós uma impressão profunda. […] É assim que a criança, para quem cada objeto é uma novidade, experimenta a realidade do mundo. A luz a atrai, ela quer apanhá-la e queima os dedos. Daí em diante, terá temor e respeito pela chama. […] O espetáculo da chama luta ainda contra a indiferença, mas perde insensivelmente seu atrativo. Pouco a pouco, o mundo deixa de ser um mundo encantado.”
A história por si só é movida pela crença na humanidade por parte da ninfa e a fé no que parece ser irreal, por parte dos outros personagens. Tudo o que faz o filme andar nos leva a perceber que somente ajudar não é suficiente. Quando o protagonista descobre que precisa encontrar os outros personagens da história em seu prédio, ele faz conclusões certeiras de acordo com a aparência de cada um, o que se revela depois de um tempo que foram escolhas erradas, e que as pessoas certas eram quem ele nem imaginava. Kandinsky chama isso de “Belo interior”:
“O “Belo interior” é aquele para o qual nos impele uma necessidade interior quando se renunciou às formas convencionais do Belo. Os profanos chamam-na feiúra. O homem é sempre atraído, e hoje mais do que nunca, pelas coisas exteriores, não reconhecendo de bom grado a necessidade interior.”
Em um certo momento, um dos personagens é designado a ver a “fera” pois ninguém mais pode vê-lo, apenas ouvir ou sentir o vento balançar enquanto ele passa, mostrando como todos precisam acreditar no desconhecido e invisível aos olhos, pois acarretará em um bem maior. Isso se torna muito interligado com a questão de religiosidade que Shyamalan sempre toca, muito parecido com o Deus cristão, que não é visível, mas sentido de diferentes formas por quem acredita nele.
O próximo será “Sinais”, onde, numa certa noite, os filhos de um ex-padre percebem que se formaram círculos no chão de sua plantação, destruindo parte dela. Ninguém sabe explicar quem os fez e o porquê.
Nesse filme, Shyamalan mostra claramente um embate de fé o tempo inteiro. A questão da religião é forte e explícita quando, um pai solo de família é um recente ex-padre que perdera a fé quando sua esposa morreu num acidente de pura “má sorte”, como é dito várias vezes durante o longa. O protagonista chega a dizer que “não há ninguém olhando por nós, estamos sozinhos”.
O diretor reforça mais ainda os diálogos diferentes que a fé pode ter em relação às coisas. A fé propriamente dita, como religião, a fé no “desconhecido” que é algo costumeiro em seus trabalhos e a fé em si mesmo, no ser humano indivíduo e no coletivo. Isso se mostra claro quando a trama revela que ET’s estão invadindo a Terra e o pai custa a acreditar no que a TV e os filhos dizem, até que ele os vê com os próprios olhos; diferente do tio das crianças, que acredita quase instantaneamente. Quando o personagem é indagado sobre ser o fim do mundo, afim de proporcionar conforto ao irmão, ele diz que existem dois tipos de pessoas: as que veem coisas como sinais e milagres, e as que veem como sorte e estão por si só no mundo. Ele pergunta ao irmão que tipo de pessoa ele era – que responde ser o primeiro tipo, já ele não dá sua resposta, reforçando sua falta de fé.
O autor confronta essas questões não como uma perda, mas uma transformação própria. Kandinsky relata uma necessidade de conexão com si mesmo de novo:
“Quando a religião, a ciência e a moral são abaladas (esta pela rude mão de Nietzsche), e quando seus apoios exteriores ameaçam desmoronar, o homem desvia seu olhar das contingências exteriores e volta-o para si mesmo.”
A obra inteira é trabalhada com esse ar sobre a espiritualidade. Se tratando sobre a fé no coletivo, Shyamalan traz uma fé numa família que sofreu uma ruptura e se refaz através aos poucos com o decorrer dos acontecimentos. O pai começa a demonstrar que acredita nas criaturas extraterrestes, refaz um laço com os filhos para protegê-los e a seu irmão também, voltando à ideia de fé na família.
Ao final do longa, sua fé é testada mais uma vez, através de um ataque de asma do filho junto a um ataque do ET. A criança está prestes a morrer, quando fica explícito que o personagem acredita em algo maior e que não seria sorte, e sim, um milagre. A última cena, dele vestido novamente como padre, mostra que sua fé retornou.
Por último, “A Vila”. Um suspense que se passa numa vila isolada que parece viver no século passado, um local onde não existe violência e o único mistério é uma floresta que a cerca, onde vivem as criaturas vilãs do filme que apenas os anciões sabem sobre.
Com o decorrer da história, o personagem principal busca explorar o bosque não só por curiosidade, mas também em busca de conhecimento e avanço. Logo que ele expõe seu desejo pelo conhecimento, as criaturas aparecem na vila reprimindo, como um aviso, para que fiquem longe. Elas o fazem isso através de uma visita durante a noite e marcando as portas com sangue. Isso pode se assemelhar tanto o primeiro pecado – o fruto do conhecimento – como a marca nas casas, durante as pragas do Egito, para que o anjo da morte não entrasse.
Em um certo momento, o personagem está à beira da morte e nessa hora muitas coisas são reveladas. Seu par romântico decide atravessar a floresta em busca de medicamentos e descobre que tudo o que viveu foi uma mentira. Ivy, a personagem, toma o conhecimento – através dos anciões – que não existe nenhum ser maligno na floresta, que eles apenas o inventaram para que ninguém ousasse ultrapassar a fronteira estabelecida por eles nem soubesse que existira um mundo moderno depois do bosque.
Essa força da personagem gera uma fé em si mesma, para enfrentar toda essa relação do mal e bem dentro da história. Porém, mesmo com medo disso a sua volta, ela o enfrenta, buscando entender esse mundo. Como o autor relata:
“A vida espiritual, a que a arte também pertence e de que é um dos mais poderosos agentes, traduz-se num movimento para a frente e para o alto. […] E o próprio movimento do conhecimento. Seja qual for a forma que adote, conserva o mesmo sentido profundo e a mesma finalidade.
As causas da necessidade nos obrigada, “com o suor do nosso rosto”, a progredir pelo sofrimento, pelo mal e os tormentos, permanecem para nós envoltas em obscuridade. Quando se chega a uma parada […] perversamente uma mão invisível lança no caminho novos blocos que o recobrem, por vezes, de forma tão completa que ele fica irreconhecível.”
A questão da religiosidade começa a entrar em questão a partir daí. Em todo momento o filme mostra que a cor vermelha é a cor “ruim”, pelo fato de ser a cor do sangue, da violência e da morte; as criaturas usam capas vermelhas escondendo seu corpo e rosto. Enquanto os personagens usam capas amarelas, que remetem a alegria e riqueza, como uma recompensa por ser bom, digno e obediente.
Para entrar na floresta, é necessário que a personagem entre com “pedras mágicas”, como se fosse um amuleto, parecido com os amuletos que praticantes de algumas religiões carregam pelo corpo.
Toda a pressão sobre como a floresta é ruim e não pode entrar nela, mas a vila é perfeita pode ser vista como a relação de céu e inferno. A floresta sendo o pecado e a cidade, que está do outro lado, sendo o inferno, onde acontecem as barbaridades e violência, criando todo um medo pelo desconhecido.
O diretor faz toda essa relação em seus trabalhos e a obra de Kandinsky vai falar sobre a questão da fé muito mais intrínseca na arte, porém Shyamalan entende como algo mais humano, quase do dia a dia, como se precisássemos nos reentender e nos encontrar em nós mesmos sempre.
Em seus filmes, suas histórias misturam realidade e fantasia por uma questão de observar o mundo sob uma ótica menos concreta e mais estranha ou de um espetáculo, diferente sempre do que o espectador está esperando. Ele rememora até um trabalho expressionista nisso, mas olhando sob os olhos da atualidade do mundo, sem deixar de relacionar a fé e a religiosidade neles.